"Os gestores públicos que não cumprem a lei devem ser inelegíveis"
É a primeira mulher a dirigir um órgão superior de justiça no País. Numa época marcada por sucessivas notícias de investigações e detenções devido a suspeitas de crimes de colarinho branco, Exalgina Gambôa revela, nesta grande entrevista ao Expansão, que a sua equipa será implacável com gestores públicos que não cumprem a lei.
Que balanço faz dos primeiros 100 dias na gestão do Tribunal de Contas (TC)?
minha nomeação decorre de um processo normal de substituição devido ao fim de mandato do anterior Juiz Conselheiro Presidente. Nesta conformidade, assumi o cargo de Presidente do Tribunal de Contas e, como é óbvio, encontrei alguns desafios que estão a ser superados com base num plano de acção aprovado por todos os juízes e que contou com a intervenção de todas as unidades orgânicas do tribunal. Portanto, depois de um período de auscultação de todas as unidades orgânicas, elaborámos este programa de actividades e estamos a executá- lo. Por isso, pensamos que o balanço é positivo.
Que Tribunal de Contas encontrou?
Encontrei uma cultura organizacional assente no centralismo e na concentração de poderes na Presidência do órgão. Isto foi um facto constatado. Deparei-me com desafios próprios de uma instituição de média dimensão e com enormes responsabilidades perante a Administração do Estado, quer dizer, compete a nós, no quadro da execução do Orçamento Geral do Estado (OGE), aprovar os contratos que depois vão promover a execução das obras públicas. Conforme referi, após a fase de auscultação de todas as unidades orgânicas, pedimos a definição de um programa de actividades com base em novos paradigmas que visam a desconcentração dos processos e a maior partilha da informação, quer a nível dos técnicos, quer a nível dos juízes.
Quais as prioridades absolutas da equipa a que preside?
A prioridade é mesmo a formação dos quadros, para que o cumprimento da lei seja feito de forma rigorosa e de forma competente e eficiente. Depois, melhorar a organização, no caso, dotar a organização de instrumentos que nos permitam essa eficiência... e um dos desafios que encontramos é precisamente este, o de informatizar os processos para melhor circulação da informação e para facilitar mesmo o tratamento da informação.
O número de juízes e técnicos que dispõe é suficiente para enfrentar os desafios dos novos tempos?
Não é suficiente. Do ponto de vista da organização, tal como ela está concebida, o âmbito da estrutura actual que está em funcionamento também já não é suficiente, os juízes e técnicos para o volume de trabalho que existe.
Está previsto o aumento do quadro de pessoal?
Neste momento, o Tribunal de Contas tem sentido a necessidade de aumentar o seu quadro de pessoal para poder dar resposta à nova dinâmica do Tribunal e do programa do Executivo. Está em curso a revisão da Lei Orgânica e do Processo do Tribunal de Contas, e nesse âmbito prevê-se o alargamento do quadro orgânico de funcionamento deste Tribunal.
Que dificuldades o conjunto de juízes e técnicos deste tribunal tem encontrado para cumprimentos das suas obrigações?
Existem dificuldades do ponto de vista organizacional, técnico e jurisdicional. Do ponto de vista de organização, temos dificuldades de circulação da informação, conforme referi, precisamos de maior celeridade no registo e tramitação da informação para técnicos e juízes e, por isso, vamos precisar mesmo de informatizar os processos e actualizar todo sistema informático que temos. Do ponto de vista jurisdicional, temos dificuldades, por exemplo, com a não instrução correcta dos processos pelas entidades competentes para a obtenção de vistos no âmbito da fiscalização preventiva do Tribunal de Contas. Encontrámos também dificuldades no acesso incondicional a algumas fontes de informação para obtenção de dados necessários ao acompanhamento da execução do OGE e, por consequência, importantes para a elaboração do parecer à Conta Geral do Estado. No que diz respeito à prestação de contas pelas unidades orçamentais, também é feita de acordo com os procedimentos aprovados na resolução n.° 4/16 deste tribunal.
Está a dizer que há instituições públicas que se recusam a fornecer informações?
Nós precisamos de trabalhar com o Ministério das Finanças nos dados, porque o OGE tem receitas e despesas, e se tem receitas e despesas, as despesas só podem ser feitas em função das receitas. E, às vezes, precisamos de informação do Ministério das Finanças sobre o volume da receita arrecadado, para permitir que os gestores façam despesas. E, então, precisamos de ter essa informação também ao longo do ano para aferir até que ponto os gestores estão a cumprir com as metas programadas a nível do OGE, que é o programa do Governo.
Desde o início do vosso mandato, quantos processos já foram analisados?
No terceiro trimestre do corrente ano, que é o período que diz respeito a esses 100 dias, nós recebemos na área da fiscalização preventiva 1363 processos de pessoal, dos quais foram analisados mais de 500 processos. Alguns estão em curso de serem analisados e outros foram devolvidos por má preparação. E a nível dos contratos, recebemos 74 processos, alguns já visados e outros que continuam em avaliação. No âmbito da fiscalização sucessiva, foram também recebidos mais de 1366 relatórios de prestação de contas.
E quais foram as irregularidades mais graves até aqui detectadas?
Conforme disse, às vezes, é a má instrução dos processos. Os contratos devem observar a Lei 9/16. Esta lei diz que antes da adjudicação da obra os contratos devem ser objecto de concurso público, nomeadamente via concurso público aberto, concurso público de forma limitada ou adjudicação directa, em função dos tectos definidos (valor da obra ou contrato), portanto, tem aqui um conjunto de regras que, obrigatoriamente, devem ser observadas antes da assinatura de qualquer contrato. E é essa conformidade legal que o Tribunal de Contas fiscaliza, se estes preceitos foram respeitados e, em caso afirmativo, conceder o visto.
O que deve ser mudado no diploma legal que estabelece as competências do Tribunal de Contas?
Muitas coisas. Neste momento estamos num período de revisão da Lei 13/10. Um dos aspectos principais que vamos mudar é alargar as competências do tribunal no âmbito da fiscalização sucessiva, que nós denominamos de fiscalização concomitante. Portanto, a fiscalização sucessiva é feita com base nos relatórios de prestação de contas, mas a fiscalização concomitante visa o acompanhamento da execução dos contratos dos programas logo após a sua assinatura. À medida que os contratos vão sendo executados, é possível ao Tribunal de Contas agir. Por vezes, chegávamos e tínhamos de esperar até ao final da execução para efectuarmos a fiscalização e constatávamos o incumprimento de 20% e 50%. Agora, ao longo da execução, com a fiscalização concomitante, será possível fazer isto.
"Temos que analisar e olhar para o nosso próprio país"
Sobre os gestores públicos que recorrentemente não têm apresentado justificativa das despesas ou execuções financeiras que efectuam, que medidas lhes têm sido aplicadas, do ponto de vista sancionatório?
A lei obriga a todos os gestores públicos a prestar contas. E a lei do Orçamento é clara. Quanto a isto, o Tribunal de Contas só tem que informar quais são as unidades que prestaram contas ou não. Mas, no geral, nós este ano, em relação ao ano de 2017, recebemos mais de 80% da prestação de contas. E entre os gestores que ainda não prestaram contas, ou apresentaram fora do prazo, apesar das suas justificações, temos que instaurar um inquérito ou fazer uma auditoria.
No Brasil, por exemplo, caso isto não aconteça, além do processo criminal, o governante fica até inelegível para assumir funções públicas e ou de Estado, durante muitos anos.
Nós também defendemos isso. Os gestores públicos que não cumprem com a lei devem ser inelegíveis a novos mandatos, e isto decorre da avaliação dos relatórios que são feitos sobre a prestação de contas, porque depois emitimos um relatório anual de actividades, onde se espelham as unidades orçamentais que prestam contas ou não. Nós temos que analisar a nossa conjuntura interna, temos que analisar e olhar para o nosso próprio País, nós estamos numa fase de mudança e, como é do vosso conhecimento, muitos dos gestores públicos foram mudados, há novos prestadores, então, eles têm também que prestar contas. Se um gestor é mudado no meio do exercício económico, ele tem que ter tempo para conhecer a organização, para depois prestar contas. E, muitas vezes, recebemos a justificação de gestores que não prestaram contas, às vezes recorrem disso, da mudança de titular da pasta nas empresas e, outras razões, que se forem justificadas, nós aceitamos e a prestação de contas depois é feita no período seguinte.
"O Tribunal de Contas sempre exerceu muito bem o seu papel"
Quais são as instituições mais prevaricadoras no que diz respeito à boa gestão dos recursos públicos?
Neste momento, a fiscalização sucessiva incide mais sobre as empresas públicas. Temos casos de incumprimento que estão a ser tratados com o Ministério Público.
Neste momento, quantos gestores públicos estão as contas com o Tribunal de Contas?
Temos um leque de gestores penalizados por irregularidades na gestão. Não devo mencionar nomes, por força do dever de sigilo a que estou sujeita.
Vivemos um período excepcional. Até que ponto os juízes do Tribunal de Contas estão preparados para o combate à corrupção e à impunidade, através da fiscalização e do controlo das despesas públicas?
Naturalmente que estamos preparados, porque o combate à corrupção e à impunidade é exercido com base nas competências que são atribuídas ao Tribunal de Contas, que é a de fiscalizar as contas públicas sujeitas à lei. E, ao receber os relatórios e contas das entidades sujeitas à sua jurisdição, o tribunal vê a legalidade e regularidade da arrecadação das receitas e, ao aferir isto, vemos até que ponto as empresas usam os dinheiros públicos para os fins para os quais foram definidos. Caso haja irregularidades, o gestor público tem que responder. Ou através da reintegração, ou através de um processo que é instaurado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que funciona dentro do Tribunal de Contas.
Concorda que os níveis de corrupção e impunidade se devam, em grande medida, ao facto de o Tribunal de Contas não ter cumprido com o seu papel?
Não concordo com esta opinião, porque o Tribunal de Contas tem exercido e sempre exerceu muito bem o seu papel. De facto, temos limitações em termos de competências, porque, como lhe disse, a responsabilização criminal não compete ao Tribunal de Contas, mas sim à Procuradoria-Geral da República. Por isso é que dentro do Tribunal de Contas funcionam dois procuradores que participam e tomam conhecimento dos relatórios de auditoria e dos inquéritos que são elaborados, e sempre que detectam irregularidades no uso dos fundos do erário público, aí a mão da Procuradoria tem que se fazer sentir.
Há quem diga que o combate à corrupção, sobretudo de actos praticados na época do Presidente José Eduardo dos Santos, poderá desencadear numa instabilidade política. Que opinião tem?
[Silêncio] Os juízes não podem imiscuir-se na política, peço desculpas, não posso responder a esta pergunta.
Tem noção de que os cidadãos têm uma percepção de que o TC não faz absolutamente nada?
Conforme lhe disse, não concordo com esta afirmação, porque o Tribunal de Contas tem sido transparente na sua actividade. O Tribunal de Contas sempre fez a edição de todas as sentenças e todos os acórdãos e resoluções que toma. Temos, portanto, divulgado regularmente informações para prestar contas das nossas acções aos cidadãos. Agora, eu creio que, a nível da sociedade, ainda não há muito a cultura da prestação de contas, ou seja, os cidadãos precisam de mais literacia financeira.
Até que ponto os juízes deste tribunal estarão preparados para suportar uma eventual pressão política nas decisões que tomam?
Não é possível haver pressão política. Os juízes têm que trabalhar de forma isenta, têm que zelar pelo cumprimento da lei, defendendo também o interesse público, porque as leis são feitas com base no interesse público. Então, não se tem verificado interferência política a nível do Tribunal de Contas.
Até há pouco tempo, era deputada do MPLA e, ideologicamente, terá afinidades com este partido que sustenta o Governo. Sente-se confortável a desempenhar este cargo?
Com certeza que sim. O partido que ganhou as eleições é o MPLA. O chefe de Estado foi eleito e é representante do MPLA. E nós assumimos que o partido ganhou bem as eleições, foi escolhido pelo povo e as instituições têm que cumprir com o mandato que o povo deu. E nós, nesta função, neste momento, estamos isentos da política, mas não estamos isentos do programa de Governo que o povo sufragou nas urnas, que é o programa de governo do MPLA que tem de ser cumprido...
Até que ponto estará garantida a vossa independência quando estiverem em causa processos cujos arguidos terão alguma relação, por conta das funções que já exerceu, quer seja no Governo ou como deputada?
Pois. Nós, apesar de sermos chamados tribunal, não fazemos julgamentos. Aliás, apenas julgamos as contas. Portanto, não há aqui necessidade de haver parcialidade na visão das coisas, porque o interesse público é o programa para o bem-estar da sociedade.
PERFIL: A mulher que fiscaliza as contas
É divorciada, tem 60 anos, e é amante de música clássica e gospel. Antiga jogadora de basquetebol, entre outras funções, já exerceu o cargo de secretária de Estado da Cooperação para as Relações Exteriores, e de deputada à Assembleia Nacional, onde presidiu ao seu Conselho de Administração, tendo, por outro lado, pertencido à Comissão de Economia e Finanças. A nível internacional, já foi vice-Presidente do Fórum Parlamentar da SADC, em representação de Angola. Mestre em Economia Monetária e Financeira no Instituto Superior de Economia e Gestão (Portugal), Exalgina Renée Vicente Olavo Gambôa licenciou-se em Economia, em 1983, na Universidade Agostinho Neto. É também diplomata de carreira. Nesta entrevista, conclui: "Eu própria estou sujeita à lei".
(Entrevista publicada na edição 496 do Expansão, de sexta-feira, dia 26 de Outubro de 2018, disponível em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)