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Grande Entrevista

"Angola não contará com a China como parceiro significativo para o futuro"

Filipe Santos, director-geral do CEDESA

Criação de um clima de confiança, mercado funcional, conversão da dívida externa em moeda estrangeira para kwanzas, equilíbrio na relação com FMI e diversificação sem decretos são apontados pelo director do Centro de Pesquisa de Assuntos Políticos e Económicos de Angola como elementos fundamentais para o fortalecimento da economia angolana.

O Centro de Pesquisa de Assuntos Políticos e Económicos de Angola (CEDESA) considera que a reforma económica de Angola amparada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) não chega para avançar a economia. Porquê?

As reformas económicas acordadas com o FMI são essencialmente conjunturais e não se destinam a resolver os grandes problemas da economia angolana, apenas a "arrumar a casa" para depois haver crescimento. Além do mais, têm um efeito inicialmente recessivo: aumento de impostos, corte nas despesas, restrição na política monetária, etc. Isto não é suficiente. É preciso criar mercados livres funcionais, instituições fortes, justiça efectiva, burocracia que não seja um obstáculo, transportes e logística adequados e calibrar bem o papel do Estado.

Qual deve ser o caminho?

O caminho é um conjunto de políticas em que as preocupações relativas ao equilíbrio financeiro são coadjuvadas por políticas institucionais de desenvolvimento, e também por algumas iniciativas de expansão. A política económica não pode ser só de cortes. Tem de se procurar ganhos de eficiência e estimular o emprego. É necessário, acima de tudo, permitir que os mercados funcionem. Isto quer dizer que se deve tornar fácil constituir empresas e que essas empresas produzam e vendam os seus produtos e garantam que os contratos serão cumpridos. É necessário acabar com a burocracia excessiva, combater os oligopólios, criar estradas e vias de transporte adequadas e colocar os tribunais a decidir em tempo útil, sem corrupção.

Que relação deve haver com o FMI?

Uma relação de equilíbrio em que sejam adoptadas as sugestões do FMI, mas atendendo à realidade local. Os manuais de economia de Harvard têm pouca aplicação numa economia em desenvolvimento e superdependente do petróleo, e com largos níveis de pobreza como Angola.

Não há este equilíbrio na relação com Angola?

Na generalidade, da história das relações do FMI com África, a imagem que o FMI transmite é de alguma sobranceria e imposição dos seus modelos, não estando disponível para uma revisão aturada das suas políticas em função de cada um dos países, enfatizando sempre as questões de estabilização macroeconómica mesmo quando elas não são fundamentais. Até ao momento, no presente caso de Angola, temos assistido a algum cuidado por parte do FMI nessas imposições, por exemplo ao não exigir o corte imediato dos subsídios aos combustíveis. Portanto, parece que existe algum balanço na relação e é esse balanceamento que deve ser mantido e aprofundado. Há uma tendência para o equilíbrio que é fundamental salvaguardar e acentuar.

Perante as actuais incertezas mundiais, o País está em condições de evitar mais uma recessão?

Só a continuação das reformas, sobretudo com o foco nas reformas estruturais e institucionais referidas (livre funcionamento dos mercados, justiça adequada, impostos estáveis, clima social pró-empresa, Estado empreendedor, etc.) permitirá evitar recessões.

Olhando para a dependência do petróleo, quais devem ser as alternativas para a diversificação da economia angolana?

A alternativa para a diversificação não resulta de um decreto do Estado. O que se deve fazer é deixar os mercados livres e possibilitar que as empresas nasçam livremente, escolhendo as suas áreas de actividade. Assim haverá uma diversificação espontânea e viável. Dito isto, e em complemento, o Estado deve fazer as suas apostas como empreendedor, sobretudo nas áreas em que Angola tem recursos naturais promissores, obviamente a agricultura ou energias renováveis, como o sol, ou naquelas em possa efectuar "saltos qualitativos", por exemplo, as fintech.

A aposta na diversificação da economia tem sido essencialmente na agricultura. E o papel da industrialização?

Recentemente, fizemos um estudo a promover a necessidade da industrialização angolana, que começa precisamente pela área agropecuária, mas que se estenderia, na nossa visão, a indústrias de necessidades básicas, indústrias de desenvolvimento de riquezas naturais e indústrias de futuro. Energias renováveis e digitalização.

A banca angolana está em condições de acompanhar este processo de diversificação?

A banca tem de passar por um profundo processo de reestruturação e de redimensionamento. No passado, a banca ou pertencia ao Estado, obedecendo a critérios de oportunidade política, financiando os amigos do poder e muitas vezes não recebendo o pagamento desses mútuos, ou se encontrava integrada nos grupos oligopolistas que dominavam o País, servindo como caixa, ou alavanca desses grupos. Ora, é este perfil clientelista que deve terminar, mas tal vai implicar um contínuo saneamento bancário que tem de ser feito com cautela para não precipitar nenhuma crise. O Banco Nacional de Angola tem "obrigado" os bancos a concederem crédito para financiar a economia, os bancos não estão muito satisfeitos.

O fomento ao crédito passa por esta obrigação do BNA?

Sim, o crédito é fundamental para se iniciar um ciclo económico positivo. A dívida pública é um dos problemas do País.

Como é que se resolve?

Acreditamos que a dívida não está entre os principais problemas do País. O aumento do rácio da dívida relativamente ao PIB deu-se basicamente devido à flexibilização do câmbio do Kwanza. Na verdade, a dívida só se torna um problema para um país quando no mercado é criada a percepção de que ele não tem capacidades para a pagar e/ou quando efectivamente não a paga. O que há a fazer é gerir a dívida e ir pagando.

É esta a solução?

Na história económica mundial sempre houve dívida e continuará a haver. A questão é a capacidade para a liquidar atempadamente. Assim, o ideal será converter o maior montante possível de dívida em moeda estrangeira para kwanzas, prolongar o serviço da dívida ou aproveitar as oportunidades que surjam com juros mais baixos e fazer trocas de dívidas. Olhando para o endividamento externo, a China continua a ser o maior credor de Angola.

É um caminho a continuar ou é altura de se olhar para outro tipo de financiadores à semelhança do FMI?

Na nossa perspectiva, a dívida à China é um problema fundamentalmente político e é nessa vertente, e não na vertente técnica, que deve ser resolvido. As mais recentes análises financeiras internacionais dão conta de uma forte retirada da China do seu projecto "Belt and Road Initiative". Em termos de financiamentos internacionais, verifica-se que os empréstimos das instituições financeiras chinesas, juntamente com o apoio bilateral aos governos estrangeiros, caíram a pique. Por exemplo, os empréstimos do Banco de Desenvolvimento da China e do Banco de Exportação e Importação da China passaram de um máximo de 75 biliões USD em 2016 para apenas 4 biliões USD no ano passado.

O que é que isso quer dizer?

Isto pode querer dizer que Angola não contará com a China como parceiro significativo para o futuro. Possivelmente contará com a China para um soft-landing dos problemas da dívida externa, e para a continuação de uma relação amena, mas não para um reforço e retomada em força da presença chinesa em Angola.

Quem substituirá a China como parceiro preferencial de Angola?

Não existe uma resposta clara. A melhor aposta parece ser o abandono da tradicional tendência da política externa angolana de alinhamento com um bloco. O melhor seria adoptar uma estratégia de geometria variável, estabelecer boas e intensas relações com diferentes eixos, reforçar as relações com o Ocidente. Vislumbra-se um grande interesse da Alemanha por África, o que a levou a lançar um chamado "Plano Marshall para África", e de certeza que o Reino Unido pós-Brexit necessita de novos mercados e políticas arrojadas para não se afundar na irrelevância.

É esta a via?

Retomar as relações com o Brasil, a necessitar a renovação depois dos escândalos Lava-Jato e da Igreja Universal, é outro aspecto a ponderar. Apostar na Índia, cujas relações económicas com Angola se têm aprofundado imensamente, mas de forma discreta. O Golfo Pérsico, cujas monarquias necessitam de investimentos diversificadores além do petróleo, será outra das grandes apostas de Angola, precisamente na área da diversificação mútua das economias. Em resumo, o recuo da China como grande financiador e parceiro comercial de Angola abre as portas a uma política externa angolana de geometria variável que poderá assentar no reforço de relações efectivas com a Europa, Brasil, Índia e Golfo Pérsico.

O governo tem apostado num discurso de captação de investimento, sobretudo estrangeiro. As reformas em curso no País são suficientes para a captação destes investidores?

Do ponto de vista técnico, as reformas correspondem ao exigível. A questão é que tem de existir um contexto adequado ao investimento, aquilo a que o economista Schumpeter chamava o "clima social." Os investidores, quando olham para Angola, têm de sentir que vão lá ganhar dinheiro, que não há o perigo de perderem tudo ou de que a corrupção vá invalidar todos os projectos e que têm possibilidades de desenvolver os seus negócios sem excessivas interferências. Ora, é este clima que deve ser criado, a par dos aspectos mais técnicos. Um quadro legal que seja cumprido, inexistência de corrupção a este nível, sistema fiscal estável e, sobretudo, confiança na atitude pro-business do Governo.

Não há este "clima social" para a captação de investimentos?

Efectivamente, é um clima em construção, que ainda não está atingido. Onde é que se deve melhorar? Do ponto de vista técnico, a prioridade é terminar com a burocracia e explicitar que Angola já não é o País de negociatas obscuras, mas uma economia em modernização, com um Estado ágil, instituições que funcionam e uma carga fiscal razoável e estável, com imensas oportunidades de investimento. Esse é o ponto-chave.

Que perspectiva faz da economia angolana para este ano?

Estamos optimistas, pois o esforço de consolidação e de reforma que vem desde 2017 poderá começar a dar frutos. O essencial é que a crise pandémica seja ultrapassada. Obviamente, a manutenção do preço do petróleo [barril/brent] acima dos 50 USD também ajudará. Desde Dezembro, que tem estado a esse preço e isso é estimulante. Realça o preço actual do barril de petróleo.

E se o preço afundar?

A economia ainda está muito dependente do preço do petróleo. Se o preço afundar, as perspectivas ficam algo menos optimistas, esperando-se, contudo, que as reformas em curso permitam uma saída rumo ao crescimento. A privatização é outra aposta do Governo. Que avaliação faz a este processo? Neste momento, é muito cedo para avaliar, devido à pandemia, que atrasou tudo. As privatizações não podem ser vendas ao desbarato que apenas criem oligarcas, como aconteceu na ex-União Soviética.

É altura de o Estado deixar o mercado para os agentes privados?

Sim, naquilo que os privados saibam e queiram fazer. Não nas áreas em que os privados não intervêm ou não têm capacidade financeira. A inovação resultará da comparticipação entre privados e Estado.

É esta a questão?

A questão fundamental da economia angolana é a do tempo de mudança. O modelo económico adoptado em 2002, baseado no petróleo e no consumo, faliu claramente em 2014/2015. Mas só começou a ser mudado em 2018 e não se substitui em 2 ou 3 anos e sem sacrifícios. Neste momento, numa conjuntura internacional dificílima, está-se a querer corrigir mais de uma década de erros económicos tremendos. Não se consegue de um dia para o outro, além de serem precisas mais e melhores reformas. Tem de haver coragem por parte do Governo e simultaneamente espírito de sacrifício, para aguentar e levar a bom porto esta mudança fundamental e necessária. Mas isto tem de ser explicado e bem comunicado à população, o que muitas vezes não tem acontecido.

Três anos depois, como avalia a programa de governo de João Lourenço?

João Lourenço está no caminho certo e tem boas intuições económicas. O que necessita é de uma visão mais abrangente da reforma económica. Não é só o programa do FMI, é necessário um completo programa nacional de reforma estrutural e institucional. E também é fundamental acompanhar em detalhe a execução dos programas. Muitos dos falhanços não estão nas ideias, mas na sua execução. Acreditamos que o Presidente deveria ter criado estruturas ágeis fora dos ministérios, conservadores por natureza, para gerir e controlar o essencial das suas grandes reformas.