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"Que tamanho tem a crueldade de quem guarda dinheiro em offshores, com a população a morrer de fome?"

Cristiano Mangovo

O artista plástico, Cristiano Mangovo, participou, em Paris, numa das mais prestigiadas feiras de arte contemporânea, a "1-54", com a mostra "Africa Today". Na conversa com o Expansão usa a ironia para questionar: "para ser forte é preciso desafiar e colonizar o outro?"" Para mudar o contexto económico do País sugere o fomento do turismo.

Participou, em Paris, na "1-54 Contemporary African Art Fair at Christie"s. Que mostra é esta?

Trata-se de uma edição especial da 1-54, uma das mais prestigiadas feiras de arte contemporânea da actualidade, dedicada à difusão da produção artística actual dos 54 países do continente africano. Decorre habitualmente em três edições anuais, em Londres, Nova York e Marrakech e centra-se não só na obra de artistas residentes em África, como também na obra dos artistas da diáspora. Nesta edição única e especial da feira, que decorre no palácio da Christie"s, e que nasceu em resposta a este momento desafiador que vivemos, vou estar representado pela galeria This Is Not a White Cube, que foi especialmente convidada a integrar um corpo muito restrito de apenas 20 galerias.

O que apresentou?

Apresentei uma série inédita: "Africa Today" com cerca de seis obras de pintura sobre tela de diferentes formatos. A série integra um projecto site-specific que conta ainda com obras do artista são-tomense René Tavares, subordinadas ao tema "Thinking about Africa"s Future". O projecto, com curadoria de Graça Rodrigues e Sónia Ribeiro, procura apresentar uma visão e uma reflexão dual sobre a contemporaneidade e o futuro do continente. O evento físico vai acolher coleccionadores, galerias, curado
res, historiadores, críticos e outros agentes do mundo da arte e, naturalmente, não quis deixar de marcar presença quando o desafio me foi lançado. A feira irá decorrer em conformidade com as regras de distanciamento social, seguindo medidas sanitárias estritas para garantir a saúde e segurança de todos.

Que mensagem transporta a sua "Africa Today"?

Esta colecção inédita foca-se no desenvolvimento de uma narrativa sobre o continente africano, o continente-mãe, o berço da humanidade. Em colaboração com as curadoras do projecto, decidi designar a colecção de ""Africa today"". Através de uma narrativa plástica, lanço, indirectamente uma pergunta aos continentes/territórios colonizadores e colonizados, ali personificados. Demonstro a posição de África desde a época colonial até à actualidade, colocando ironicamente uma questão ao "herói" que se agiganta em cada um: "para ser forte é preciso desafiar e colonizar o outro?"".

Qual o "lugar" desta exposição na sua carreira?

Para mim, a importância de uma exposição transcende sempre o acto de mostrar as obras neste ou naquele local. O princípio do meu posicionamento, enquanto artista, passa muito por expor narrativas concretas de forma a propor uma reflexão abrangente e um debate concreto com o observador, regressando a temas e problemáticas que, no meu entender, continuam a enfraquecer o posicionamento e a possibilidade de desenvolvimento sustentável no nosso continente. A minha intenção é a de alertar e de impulsionar a reflexão e a acção concreta por parte dos povos africanos. Um contributo para uma evolução positiva que entendo ser necessário implementar num futuro próximo.

Como gostaria de ver o continente hoje, partindo das suas narrativas?

O continente africano, tendo em conta toda a população e recursos naturais que possui, deveria ser hoje já um continente bem estruturado e independente, isto se realmente os seus dirigentes políticos procurassem investir no território e nas populações, promovendo a formação e devolvendo aos cidadãos o estatuto de fonte primeira de recursos. É necessário formar, promover a manutenção e a perpetuação de um sistema transformador, do qual possa nascer uma evolução e um crescimento sustentável. Enquanto estes factores não forem tidos em conta, a autonomia e a independência serão sempre postas em causa. O momento que se vive é a imagem disso mesmo. Ante os problemas colocados pelo surto pandémico da Covid-19, África continua dependente de apoios logísticos e financeiros vindos do oriente e do ocidente. No caso concreto das estratégias de combate à pandemia, os Estados Unidos e a Europa criaram as suas próprias vacinas e igualmente a China ou a Rússia. África, todavia - berço da humanidade - continua sempre passivamente dependente, à espera de receber as vacinas de além fronteiras. Se tivesse uma só palavra para exprimir o que sinto, seria vergonha. A vergonha histórica de um continente em geral e de todos os seus dirigentes que, engravatados, exercem nas assembleias das nações. É desmesurada a falta de solidariedade interna. Que tamanho tem a crueldade de um africano que guarda ao longo de anos e décadas quantias obscenas de dinheiro em instituições bancárias de países offshore enquanto, em seu redor, a população morre de fome e de deseducação? O investimento é zero, é nulo. Deveria estar centrado no ser humano, focado nas gerações vindouras. Entristece-me. Fico em lágrimas.

A reciclagem também está presente nos seus trabalhos. É o seu grito pela preservação ambiental?

Sim, aproximei-me do tema da ecologia e da reciclagem de uma forma simples. Impulsionado pela paixão e pela preocupação que sentia sempre que me deparava com uma escultura em madeira. A minha imaginação levava-me automaticamente a pensar na árvore abatida por detrás daquela obra. Consequentemente, tomei a decisão de começar a trabalhar com a integração e recuperação de materiais descartados, encontrados nas ruas e nas casas abandonadas. Passei a retrabalhá-los.

Sente-se mais à vontade na pintura, cenografia urbana, performance ou escultura? Porquê?

Sinto-me à vontade em todas essas modalidades. Relativamente às artes plásticas, seja na pintura, cenografia, performance, escultura ou instalação, sinto-me uma espécie de pequeno deus com as ferramentas à minha disposição. Sinto-me, acima de tudo, independente. Acho que todas essas modalidades são complementos da minha formação básica e da minha fonte de inspiração.

Como é a vida do artista em pandemia, confinado?

Antes de falar da pandemia e da minha experiência pessoal neste contexto, tenho de dirigir as minhas sinceras condolências a todos os que directa ou indirectamente perderam alguém próximo. Este é um tempo demasiado alarmante em todo o mundo. Pessoalmente, foco-me na minha carreira artística. Não posso escrever aqui um livro sobre o impacto que teve o primeiro confinamento, aquilo em que me tornou. No fundo, tenho trabalhado em casa, onde sempre tive o meu estúdio e o meu refúgio, e neste momento de pandemia continuo esse meu trabalho e aprofundei-o, ainda que mais só.

Teve de alterar a sua agenda? Como?

Quase tudo o que estava marcado para o ano 2020 foi alterado: exposições, residências artísticas e outros projectos. Fico contente que a 1-54 não tenha sido cancelada e que tenham inclusive produzido esta edição especial em 2021, em Paris, como resposta ao momento que se vive e à necessidade que artistas e galerias têm de prosseguir nas suas determinações. Agradeço imenso aos mentores da feira. Agradeço também a coragem e a determinação da Galeria This Is Not a White Cube e o facto de o governo francês ter compreendido que um confinamento profundamente restrito só adensa a crise.

De que forma o artista sente o espaço e as obras numa exposições online?

A exposição online permite ultrapassar alguns constrangimentos causados pela inibição do deslocamento. Garante a adesão a quem interessar em qualquer parte do mundo graças à tecnologia actual. Infelizmente ela não produz o mesmo impacto nem a mesma sensação de estar fisicamente num evento, numa feira, num museu. Ainda me lembro da primeira vez que vi uma obra de Picasso ao vivo no Museu Berardo, em Lisboa. A sensação foi tão agradável e tão única, que até hoje me consigo lembrar e isso dificilmente ocorre online. Mas o que fazer? Paciência! Há que esperar! Através das plataformas online, pelo me
nos, conseguimos exponenciar os eventos e impedir que sejam totalmente cancelados. Assim se vai derrotando este distanciamento social forçado.

Em que medida a Covid-19 alterou a sua vida financeira?

Na verdade, não alterou grande coisa. A minha vida financeira não está, de todo, no centro das minhas preocupações. Desde há algum tempo que estruturei um modelo de poupança que me permite não depender directamente do recebimento constante de um rendimento. A vida ensinou-me a fazê-lo assim. A vida e a minha condição enquanto estudante ainda em Kinshasa. Foi algo que me ficou desde então.
É uma pessoa poupada? Sim sou, devo-o à minha família que me educou nesse sentido, de saber poupar, e naturalmente a Deus, que também me deu essa natureza.

É cansativo ou estimulante a linha Luanda-Lisboa?

Consigo gerir bastante bem os desafios de ter uma agenda entre Luanda e Lisboa. De facto, as motivações de base para me fixar em Lisboa foram a vontade de criar mais estrutura, de aprofundar o empenho na minha carreira e a possibilidade de abrir novas portas, e é por aí que sigo!

Vive exclusivamente da arte?

Sim. Vivo exclusivamente da arte. É preciso criatividade e sobretudo ter coragem. Saber falar com as pessoas, ser honesto, ser humilde, ter princípios, criar condições e saber poupar. Fazer tudo com amor e consideração.

A arte é capaz de mudar o contexto económico que se vive actualmente em Angola?

Sim, é possível mudar o contexto que se vive actualmente em Angola com arte. É importante criar instituições, como museus de arte contemporânea angolana, museus físicos e online. Mobilizar recursos e pessoas, abrir concursos públicos ou candidaturas para criar eventos de arte e atrair o interesse internacional através da promoção e do turismo. Desburocratizando e facilitando o trânsito de turistas no território nacional.

Qual dos seus trabalhos "pinta" melhor a situação económica do País?

Quase todo o meu trabalho reflecte sobre a condição do País. Sobre a situação económica, política e educacional. Esta série "Africa Today", que apresento agora em Paris, vem mais uma vez reforçar a necessidade de moldar consciências, não só no que se refere a nós mas também a outros países africanos. A matriz e as problemáticas são as mesmas, as afinidades são inúmeras, seja nos países do sul de África, do leste ou da África austral. A arquitetura de sistema é a mesma.