"A informalidade no acesso à terra é um processo de empobrecimento"
As enormes dificuldades para adquirir ou usar a terra em Angola reflectem um problema maior, seja no modelo económico, seja na forma como as instituições públicas funcionam diariamente. Os efeitos destas distorções são visíveis a olho nu.
A nossa conversa estava programada para abordar o registo de imóveis, o acesso à terra, e a forma como estas questões se processam no País. No entanto, na última semana vivemos momentos de grande instabilidade social, com manifestações violentas, sobretudo em Luanda, mas também noutras províncias, que devem levar à reflexão e autocrítica. Qual é a sua opinião sobre o agitado contexto social e político em Angola?
Sobre o que aconteceu na última semana, em Luanda e em algumas localidades do nosso amado e querido País, devemos reconhecer que muitos desses problemas gravitam em torno daquilo que é a propriedade. A propriedade, como deve saber, não se resume à protecção física. Há outros elementos documentais que contribuem para a protecção, quer da propriedade, quer da posse [dos imóveis], que são as duas formas como nas sociedades modernas se processa a distribuição da riqueza imobiliária.
Mais de 30% da população angolana vive em situação muito difícil de pobreza extrema ou pobreza multidimensional. Existe alguma relação entre a realidade actual, incluindo a insatisfação social, a violência a vários níveis, e o acesso à terra, à propriedade privada e aos direitos conexos?
Todas essas questões estão intimamente ligadas. Se reparar, mais de 50% das nossas residências não estão cadastradas. Não estão oficializadas. Aquilo que nós reputamos e referimos como propriedade imobiliária, é visto sobretudo na perspectiva do lugar onde as pessoas estão instaladas e onde as famílias dormem, acordam e fazem a sua vida. Mas a propriedade, como nós sabemos, a residência, a casa, o imóvel, é muito mais do que isso.
Mas também não é apenas uma questão legal ou patrimonial, porque envolve outras dimensões importantes.
O não registo da propriedade imobiliária em Angola, e há estudos feitos neste sentido, é um factor, por si só, de empobrecimento. Eu posso assegurar que quanto menor é o formalismo nas transacções no mercado imobiliário, maior é o empobrecimento das famílias, mas também do próprio Estado. E temos de começar a ver as coisas também nessa perspectiva, por via do Imposto Predial e de outras questões. Cobrar impostos não é apenas um direito do Estado, é também uma obrigação. Muitos dos novos assentamentos populacionais, em Luanda, são feitos em zonas onde as casas não têm número, as ruas não têm nome. Portanto, são bens que, do ponto de vista económico, representam quase nada, quando, e a verdade é esta, as pessoas investiram recursos para construir esses imóveis.
A instabilidade que também afecta o seio familiar e a forma como as famílias funcionam em Angola, por várias razões, podia ter menos impacto social caso o acesso à terra fosse mais eficaz?
Concordo e vou mais longe: se nos lembrarmos, e eu estou aqui a fazer referência à minha infância, ao meu ensino de base, aprendíamos que 75% da população angolana era camponesa. 75% da população angolana era camponesa e naquela altura Luanda devia ter qualquer coisa como 750 mil, ou, ou na melhor das hipóteses, 1 milhão de habitantes. Luanda terminava na zona do Rocha Pinto. Depois era mato. Hoje toda aquela zona encontra-se habitada. São os novos bairros, como Kikagil, como Talatona, Benfica, Kifika, como Ramiros. Eu tenho dúvidas se os imóveis desses novos bairros estão devidamente cadastrados nas administrações municipais, nas respectivas conservatórias e se estão inscritos nos bairros fiscais das áreas onde estão localizados. Como consequência, o próprio Estado deixa de arrecadar receitas.
Outra questão relevante é a gestão e a planificação urbana. Parece haver uma conexão directa entre a informalidade na ocupação da terra e a falta de infraestruturas e serviços básicos
Vou ser obrigado a recordar o nome da socióloga ou pedagoga, a doutora Francisca do Espírito Santo, antiga governadora de Luanda. Na altura, o seu vice, que, se não me engano, era o Sr. Bento Soito, tinha lançado um programa que visava o cadastramento de terrenos na região sul de Luanda. Hoje os maiores conflitos que se registam, quer nos tribunais, quer nos órgãos de instrução criminal, estão relacionados com o acesso à terra: terrenos que são vendidos a duas, três pessoas, terrenos em que os munícipes estão interessados em erguer as suas residências e vivem uma panóplia de impedimentos, de ordem legal, sobretudo, conflitos com a fiscalização, documentos que as pessoas não conseguem tratar.
A excessiva burocracia leva ao cansaço do cidadão e ao descrédito das próprias instituições públicas?
Nós, em Luanda, temos o IPGUL, que é o Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda. Falando sinceramente, quem de nós sofre ou sente ou vê o impacto dessa instituição? Quem de nós vê os trabalhos ou sabe qual é o fim social ou legal, como achar melhor, da intervenção do IPGUL? Na minha maneira de ver, o seu trabalho é quase insignificante. Mas existe esta questão, que tem a ver com o plano ou o programa que a doutora Francisca Espírito Santo havia gizado. Eu lembro-me que naquela altura os topógrafos, os arquitectos, que quase não têm mercado em Angola, eram muito solicitados pelas administrações municipais, que estavam repletas, cheias de munícipes sedentos por regularizar a posse que exerciam sobre os terrenos onde pretendiam erguer as suas residências. Chegaram inclusive a pagar emolumentos ao longo dessa fase. A senhora foi exonerada e a pessoa que a substituiu quase não tocou no assunto, que foi morrendo. Este é outro problema que há no nosso País. Não há uma sequência.
Há instabilidade ao nível dos processos administrativos?
Não há uma sequência. Parece- -me que as coisas são feitas um bocadinho ao acaso ou dependendo da pessoa. Há como que uma fulanização da actividade pública. É que não se percebe: se com a doutora Francisca do Espírito Santo havia este programa para a formalização da posse e cadastramento dos lotes para a parte sul de Luanda, lotes esses que eram destinados à habitação, que é uma necessidade tremenda, por que razão o assunto parou? Por que não houve continuidade? E mais, por que razão os próprios munícipes, que acreditaram no processo, que pagaram emolumentos, que contrataram especialistas da área, não vão às administrações pedir informações? Eu, pessoalmente, e não queria aproveitar o momento para falar de mim, tenho um lote em Benfica que até hoje tem encontrado seríssimas dificuldades para ser legalizado.
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