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Opinião

Direito e capital de risco: o que o sistema jurídico angolano ainda não compreendeu sobre start-ups

CONVIDADO

Num ambiente de incerteza, muitos fundadores vêem-se forçados a recorrer a estruturas improvisadas: sociedades criadas sem pactos de sócios, promessas verbais sobre percentagens futuras, financiamentos informais sem documentação robusta. É um campo em que a ausência de regulação não é sinónimo de liberdade, mas sim de fragilidade. Quando surgem divergências - e surgem sempre -, a ausência de estrutura contratual converte-se em litígio.

Angola atravessa um momento promissor no surgimento de ideias empreendedoras e projectos de base tecnológica. Startups não são apenas empresas jovens ou recém-criadas: são estruturas concebidas para crescer rapidamente, com modelos de negócio inovadores, forte potencial de escala e elevada exposição ao risco. São desenhadas para operar num ambiente competitivo e volátil, na maioria das vezes com poucos recursos, mas grande capacidade de adaptação e ambição internacional. O ecossistema das startups cresce de forma orgânica, impulsionado pela criatividade dos fundadores e pelo capital de risco privado, mas ainda à margem de um ambiente jurídico que compreenda as suas especificidades.

Enquanto os investidores procuram estruturas contratuais minimamente seguras para amparar o risco elevado dos seus aportes, o Direito angolano continua vinculado a uma lógica clássica de financiamento: contratos de mútuo com garantias reais, exigências de colaterais e formalismo conservador. Esta visão tradicional ignora a realidade das startups, cujo valor se baseia na escalabilidade, na propriedade intelectual e na capacidade de adaptação, não em activos tangíveis ou balanços robustos.

Startups não se financiam com hipotecas, nem com penhor. Financiamento em fase inicial faz- -se com instrumentos como os SAFEs (Simple Agreements for Future Equity), mútuos convertíveis, planos de vesting, opções de compra de quotas e cláusulas anti-diluição. Todos estes mecanismos exigem um enquadramento contratual rigoroso, mas flexível, que hoje opera num vazio legal em Angola. Não há reconhecimento normativo, nem prática jurisprudencial que oriente tribunais ou assessores jurídicos.

Mesmo em países que já estruturaram ecossistemas empreendedores mais maduros, como Portugal, África do Sul ou Quénia, os instrumentos de financiamento de startups operam frequentemente sem legislação específica. Em Portugal, por exemplo, há incentivos fiscais e um estatuto legal recente para startups, mas não existe um regime jurídico para esses mecanismos de financiamento inicial.

A diferença está na prática: nesses países, a ausência de lei é mitigada por uma cultura contratual consolidada e por uma jurisprudência que acompanha a sofisticação dos negócios. Angola não tem nem um nem outro. Aqui, a ausência de enquadramento legal não é neutra, é um entrave real à confiança, à segurança e ao investimento.

Num ambiente de incerteza, muitos fundadores vêem-se forçados a recorrer a estruturas improvisadas: sociedades criadas sem pactos de sócios, promessas verbais sobre percentagens futuras, financiamentos informais sem documentação robusta. É um campo em que a ausência de regulação não é sinónimo de liberdade, mas sim de fragilidade. Quando surgem divergências - e surgem sempre -, a ausência de estrutura contratual converte-se em litígio.

A liberdade contratual é um ponto de partida, mas não basta. A complexidade técnica destes instrumentos, a assimetria entre investidores e fundadores e a inexistência de cultura contratual especializada tornam este campo especialmente vulnerável.

Em outros domínios, o Direito já reconheceu essa necessidade de regulação: contratos de franchising, factoring, seguros ou mesmo o contrato de trabalho, todos surgiram da prática privada e foram posteriormente enquadrados legalmente quando se tornaram relevantes. O financiamento de startups reúne os mesmos elementos: impacto económico, desequilíbrio entre partes e sofisticada engenharia contratual.

Defender um regime jurídico próprio para os instrumentos de financiamento de startups não é negar a liberdade contratual, é legitimá-la, protegê-la e torná-la eficaz. Não se exige um regime exaustivo, mas sim o reconhecimento claro dos instrumentos contratuais que sustentam o capital de risco: SAFEs, mútuos convertíveis, cláusulas de vesting, opções de compra e mecanismos de saída. Um diploma sucinto, ou uma orientação interpretativa que ofereça previsibilidade mínima, pode fazer a diferença entre o investimento acontecer ou recuar.

Legislar não é engessar. É reconhecer o que já acontece, oferecendo um mínimo de previsibilidade e de segurança. Sem isso, continuaremos a condenar o ecossistema empreendedor a funcionar sem um regime jurídico específico, comprometendo o seu desenvolvimento precisamente quando mais se exige estrutura e confiança.

01. SAFE (Simple Agreement for Future Equity)

Acordo pelo qual o investidor aporta capital com direito a futura participação societária, sem se tornar sócio de imediato.

02. Mútuo Convertível

Empréstimo que pode ser convertido em quotas da empresa, geralmente numa ronda futura de investimento.

03. Vesting

Mecanismo que condiciona a aquisição de quotas à permanência ou desempenho do beneficiário por determinado período.

*Ana Van Dunem, Advogada, especialista em direito societário

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