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Grande Entrevista

"Devemos preparar as empresas para a equidade salarial e de género"

Grande Entrevista a EVA SANTOS, FUNDADORA DO PROJECTO LIDERANÇA FEMININA EM ANGOLA

A falta de estudos em Angola torna difícil saber qual o espaço que as mulheres ocupam em lugares de decisão, nas empresas e nos organismos públicos. O projecto Liderança Feminina, fundado por Eva Santos, quer tirar as mulheres da sombra e mostrar a marca que elas deixam quando assumem posições de chefia.

Numa tese de mestrado sobre «Liderança no Feminino», apresentada por Edna de Fátima Linda António, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa é referido que tanto em Angola como em Portugal há uma resistência dos homens em serem liderados por mulheres, o que faz com que elas "estejam na pirâmide das hierarquias das organizações em posições inferiores e, na sua maioria, chefiem equipas maioritariamente formadas por mulheres". Como é que se vence esta resistência e em que é que ela tem prejudicado as organizações, nomeadamente empresariais?
Esta resistência vence-se com a sensibilização dentro e fora das organizações e com a inclusão de homens e mulheres na sua abordagem, análise e concretização. A liderança feminina não pode, não é e não deve ser considerada como "liderança de pequenas empresas". Não faz sentido pensarmos de forma tão redutora. Não tenho indicadores em Angola que permitam compreender se há ou não algum prejuízo para as organizações. Da minha percepção e com base em estudos internacionais, há sim uma perda no retorno financeiro pela ausência de mulheres em funções de topo.

A resistência é transversal ou há sectores onde é bem aceite ter mulheres em posições de chefia?
A resistência ou incentivo à liderança no feminino assenta na cultura da organização. Ou seja, naquilo que a define, no seu ADN. Se uma organização for propensa a ter mulheres em funções de liderança, então, será um processo natural e bem recebido. Contudo, se dominar uma orientação masculina terá, certamente, maior resistência. Contudo, se pensarmos desta forma redutora, então, nunca teríamos uma mulher Presidente, na NASA, ou nas forças militares... Estas mulheres provaram ser merecedoras, destacando-se, provavelmente, por serem audazes, inovadoras, resilientes, lutadoras e, sobretudo, competentes. Por isso, diria que qualquer sector de actividade pode ter uma mulher líder.

Há diferenças no estilo de liderança entre os homens e as mulheres? Quais?
Creio que a grande diferença é a consciência que homens e mulheres devem ter sobre o seu próprio estilo de liderança, já que os mesmos estilos de liderança são utilizados por ambos, mas claramente com diferente impacto. As características que são associadas às mulheres na liderança são a assertividade, a ponderação, a humildade, a empatia, ou seja, um estilo mais orientado para as pessoas. Por seu lado, os homens têm um perfil mais autoritário, sociável, ou seja, orientado para a tarefa.

Quais são os principais desafios que se colocam às mulheres com cargos de chefia, quer no local de trabalho e em casa?
O principal desafio é a conciliação entre uma actividade profissional e a vida familiar. Sempre que exista um cônjuge e filhos, o desafio é claramente maior, pelo que o suporte do cônjuge é fundamental na consolidação do sucesso feminino. Se, por um lado, a mulher é a directora na organização, não deixa também de ter o papel de mãe, esposa, filha, amiga... Não deixa de ter de conciliar as preocupações e alegrias da sua vida pessoal, com a vida profissional. Não é um exercício fácil, bem pelo contrário, pelo que a capacidade de gestão e planeamento são essenciais e acabam por ser mais uma ferramenta de sucesso na sua vida, quando bem utilizada. Encontrar este equilíbrio é fundamental e cabe a cada uma encontrar a sua fórmula, pois aquilo que funciona comigo, poderá não funcionar com outra mulher.

Qual a responsabilidade das mulheres no facto de continuarem a ter fraca representatividade nos lugares de chefia?
A exigência e o caminho, muitas vezes solitário, nas funções de liderança, o receio da exposição, o medo do fracasso, a impossibilidade de conciliação entre vida pessoal e familiar são, provavelmente, algumas das razões que podem afastar a mulher destas funções. Na nossa realidade, ainda subsiste que é o homem que deve ter uma função de liderança... não a mulher. E isto só poderá mudar quando as mulheres tiverem as mesmas oportunidades começando, logo desde cedo, com a educação.

A representatividade da mulher na política ainda enfrenta obstáculos, o que faz com que muitos países optassem por instituir cotas para assegurar maior percentagem de mulheres, nomeadamente, nos parlamentos nacionais. No caso da SADC, a Namíbia é apontada como exemplo (a adopção do sistema zebra elevou a representatividade das mulheres de 26,9% para 42,3%). Em Angola, o Parlamento tem 30% de mulheres, sem sistema de cotas, mas a sua voz não é muito sentida. É a favor de cotas na política?
Sou a favor de cotas na política e a todos os níveis, desde que este sistema não desvalorize a competência de quem exerce a função. Devem ser dadas as mesmas oportunidades a homens e mulheres, assente na competência e, se não a tiverem, deve existir investimento na formação e desenvolvimento dessas pessoas.

E nos conselhos de administração das empresas públicas, é preciso instituir cotas?
Seria importante para se encontrar o equilíbrio entre homens e mulheres. As cotas devem existir para dar oportunidades a mulheres e homens que, de outra forma, não teriam. Não esqueçamos que existem áreas fundamentalmente femininas onde também é importante haver representatividade masculina. Igualdade do género é fundamental.

Angola está em condições de preencher os lugares, com garantia de eficácia, caso se adoptem sistemas de cotas, na política e nas em presas?
Devemos estar preparados e trabalhar nesse sentido, mas eu diria que, mais do que criar cotas obrigatórias, é necessário fomentar, nas organizações, a necessidade da equidade do género, valorizar e potencializar a diversidade e teremos, certamente, organizações mais bem preparadas para os desafios do futuro. Complementarmente, este reconhecimento deve ser acompanhado pelo pagamento financeiro justo e adequado à função, evitando cair no erro da disparidade salarial de género que ainda existe a nível global.

Há quem se oponha às cotas, alegando que deve vigorar o critério da meritocracia. Como é que se conciliam estas duas posições?
Todos estes sistemas deveriam ter subjacente a competência! A competência e a equidade, dando ou criando oportunidades a todos, desde que preencham os requisitos. Seria um processo bastante mais adequado onde se valorizava e respeitava a diversidade. Será utopia pensar assim?

"São muitos os projectos em que as mulheres têm vindo a destacar-se"

Osmar Edgar

Vai lançar um projecto sobre Liderança Feminina. Em que consiste este projecto?
O projecto Liderança Feminina em Angola tem como objectivos criar ume rede de partilha, suportada na confiança, com o intuito de apoiar, capacitar, valorizar de forma sustentada as competências de liderança das mulheres. Pretende ainda ser um grupo de referência sobre liderança no feminino, reunindo mulheres líderes que partilhem as suas conquistas, desafios e sucessos e insucessos, que permitam que todas possam aprender, crescer e ser mais fortes face aos constantes desafios que nos são colocados a nível pessoal, profissional, social e familiar, fortalecendo e reforçando em cada uma destas esferas uma posição forte de liderança.

O projecto contempla espaços de discussão?
Sim. Queremos criar tertúlias, parcerias e programas ajustados de mentoring e coaching que valorizem o potencial que cada mulher tem dentro de si e que lhe permitirá ser melhor líder. Pretende-se, no fundo, que cada mulher seja fonte de inspiração, inspirando-se assim umas com as outras!

Em que é que este projecto pode ajudar a vencer a resistência da sociedade angolana em ceder lugar às mulheres para que ocupem, cada vez mais, espaço em lugares de decisão?
Pode ajudar na medida em que o projecto tem como missão a valorização das competências das mulheres líderes. Mas este é um processo que dependerá sempre do auto-conhecimento das mulheres. Conhecendo-me melhor como líder, serei melhor líder e através da interacção e partilha com outras mulheres. É neste processo contínuo de crescimento que nos tornamos mais fortes. Em complemento. e porque a liderança é um desafio universal ao género, irei recolher, ao longo do ano de 2019 diferentes "histórias de liderança" no feminino e no masculino de líderes conhecidos e desconhecidos da nossa sociedade. Este será o meu contributo para sensibilizar e ajudar a olhar para a liderança de forma inclusiva, natural e positiva.

Em Angola, é importante discutir esta questão? E, por outro lado, esta discussão já provocou mudanças?
Como não existem estudos sobre o tema, julgo ser importante valorizar e dar voz a todas as mulheres líderes. Os estudos seriam um ponto de partida, apenas para sustentar que a nossa realidade ainda está aquém dos 30% de mulheres em lugares de liderança. Mas são também muitos os projectos - embora alguns ainda sejam pequenos - em que as mulheres têm vindo a destacar-se. Por outro lado, temos mulheres líderes que, com a sua experiência e conhecimento, podem apoiar e transformar a vida de muitas outras. É apoiando-nos que podemos fazer a diferença e, para isso, temos de partilhar sem receios, para sermos mais fortes e, quem sabe, provocar a mudança positiva...

Quando se pensa em mulheres na vida pública e empresarial, em Angola, surge automaticamente o nome da empresária Isabel dos Santos. Que outras mulheres estão a deixar a sua marca, no plano político, empresarial, académico e artístico?
Esta questão é sempre desafiante, pois são muitas as mulheres desconhecidas que têm feito um excelente trabalho e, provavelmente, não têm o devido reconhecimento ou notoriedade por esse papel que desempenham. A diferença é a forma como valorizamos estas mulheres.

Nem sempre o trabalho que exercem é reconhecido?
Para mim, uma zungueira, com os princípios e valores éticos, morais, profissionais, é credora do mesmo respeito que uma directora geral ou CEO de uma organização. Assim, opto por não evidenciar nenhum nome e, simultaneamente, fazer o meu reconhecimento a todas estas mulheres que fazem a diferença, que, com maior ou menor impacto, ajudam a engradecer a nossa sociedade.

"Ainda há muito a fazer para ter 30% de mulheres em funções de topo"

Um estudo do Peterson Institute for Internacional Economics, sediado em Washington, EUA, revela que as empresas que aumentaram a presença de mulheres, em até 30%, em cargos executivos, viram a sua rentabilidade crescer 15%, em média. Olhando para o tecido empresarial angolano, está longe de atingir 30% de mulheres nos cargos executivos?
Sim, estamos. Ainda há um investimento grande a realizar, tanto pelo lado das organizações, como pelas oportunidades que devem ser dadas às mulheres, incentivando e promovendo-as para funções executivas de topo. Há, de facto, um ganho financeiro para as organizações que já o fazem, como refere o estudo.

No caso de Angola, há empresas que corroborem este estudo?
Pelo que sei, não existe nenhum estudo em Angola, pelo que fica a minha percepção de que esses números estão longe dos 30%. É um excelente desafio para a nossa sociedade e uma excelente oportunidade para validar o incremento de 15% de produtividade.

Uma das áreas onde é comum ver mulheres a chefiar é nos departamentos de recursos humanos. Porque é que isso acontece e em que é que a feminização dos recursos humanos é importante?
Ainda bem que assim é. Pois é positivo existirem áreas de actividade das organizações onde a presença feminina é relevante. Tradicionalmente, as mulheres tendem a escolher áreas de actuação mais ligadas às ciências sociais e os RH são, de facto, uma escolha predominantemente feminina, talvez por aqui se explique a existência de mais mulheres nestas áreas. É de saudar que as mulheres estejam envolvidas naquela que deve ser a área nuclear da organização, onde é exigido que se concilie o desenvolvimento dos colaboradores com o negócio da organização. Mas, sendo esta direcção estratégica para a organização, deverá ter profissionais com as competências adequadas, independentemente do género, pois a liderança é um processo de contínua aprendizagem e adaptabilidade e quem o souber fazer com mestria, fará a diferença, trazendo retorno à organização.

Da Psicologia Social aos RH

Osmar Edgar

Nascida no Lobito, Eva Santos é licenciada em Psicologia Social e das Organizações pelo ISCTE-IUL, Instituto Universitário de Lisboa com especialização em Gestão de Empresas, na Universidade Politécnica de Madrid, e pós-graduação em Recursos Humanos (RH). Com 20 anos de experiência no âmbito RH em empresas nacionais e internacionais, desempenha funções de liderança há 15 anos.

Fundadora do projecto Liderança Feminina em Angola, é directora de RH no Banco Valor. É conselheira na revista Capital Humano Angola, formadora, mentora, coach e oradora. Defende que o conhecimento só é efectivo quando partilhado e considera-se uma apaixonada sobre os temas relacionados com a liderança no feminino, tema sobre o qual se debruça nos artigos que escreve e publica em várias publicações. No Expansão, assina uma coluna dedicada ao Capital Humano.


(Entrevista publicada na edição 514 do Expansão, de sexta-feira, dia 7 de Março de 2019, disponível em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)