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Grande Entrevista

Saída da crise começa pela consciência de que é preciso mudar

Grande Entrevista a BRAGA DE MACEDO, ECONOMISTA

O ex-ministro das Finanças português vem a Angola falar sobre os desafios da economia e o papel do FMI. Diz que ao longo do programa o controle da dívida deverá ser mais fácil de garantir e destaca ainda as medidas de política monetária operadas no País, que deverão, "finalmente", fazer baixar a inflação.

Vem a Luanda para participar numa conferência da Universidade Católica, na qual serão abordados os actuais problemas da economia angolana. Que papel tem o acordo com o FMI na obtenção dos principais objectivos da estabilização macroeconómica e crescimento do sector produtivo?
As reformas estruturais constituem um dos pilares do programa acordado com o FMI, a par das políticas macro financeiras referidas no PEM - Programa de Estabilização Macroeconómica (orçamento, moeda, câmbios e mercados financeiros). Devem atingir os objectivos de desenvolvimento estimulando a diversificação económica, promovendo o crescimento e reduzindo a pobreza e a desigualdade. Acrescente-se que, em qualquer país em crise, a saída começa pela consciência de que é preciso mudar. Terá sido nesse espírito que o Presidente ponderou recorrer ao FMI, com cuja directora se encontrou há mais de um ano na Suíça. Recorde-se que o encontro dos dois predecessores em Itália há dez anos (no rescaldo da crise global que também fez cair o preço do petróleo) deu lugar a um programa dito de stand-by menos ambicioso do que o actual.

FMI e Banco Mundial têm alertado para o crescimento da dívida pública para níveis preocupantes. Como controlar melhor a divida?
Dentro das políticas macro financeiras que referi, o terceiro objectivo referente ao orçamento é o reforço da qualidade da gestão e o segundo relativo à política monetária e cambial refere-se à melhor afectação das divisas, por forma a garantir a solvabilidade externa. Ao longo das seis avaliações semestrais, o controle da dívida deverá ser mais fácil de garantir embora as datas previstas possam deslizar, como parece ter acontecido relativamente à primeira, prevista para o final de Março.

O Governo tem procurado melhorar a imagem do País no sentido de aumentar o interesse de investidores estrangeiros. Para isso, preparou nova legislação como a do Investimento Privado, que faz cair a obrigatoriedade de as empresas terem um parceiro angolano. Mas Angola continua na cauda de índices como o Doing Business, o que faz recear os investidores...
É uma excelente iniciativa essa do Banco Mundial recolher indicadores da facilidade em iniciar e prosseguir actividades empresariais: apesar das imperfeições dos indicadores, conhecê-los e compará-los já ajuda a apreender muitas dimensões do ambiente de negócios. Explicitando, num Relatório do FMI de Junho passado intitulado "Governação e Desempenho Económico em Angola", nota-se que um mau ambiente de negócios está associado à má governação e reciprocamente e que Angola tem nos dois índices uma pontuação "inferior à da maioria dos exportadores de petróleo e dos exportadores de produtos não petrolíferos da África subsaariana, como Botswana e Namíbia. Os custos elevados de fazer negócios em Angola reflectem múltiplos factores, como o peso da regulamentação, a intervenção excessiva do Estado na economia, as barreiras ao Investimento Directo Estrangeiro e uma política de vistos de trabalho que restringe o ingresso dos trabalhadores qualificados de que o país tanto precisa". Assim se criam oportunidades para a corrupção e fortalecem os grupos de interesse.

E Angola até tem subido nos últimos rankings...
Além do FMI, também o Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN), a propósito do PRODESI, esclarece que, "no último relatório Doing Business, referente a 2018, Angola está classificada na posição 175 em 190 países, tendo progredido sete lugares em relação ao ano anterior. Esta subida foi, essencialmente, determinada por melhorias na concessão de licenças de construção, por uma maior rapidez na obtenção de electricidade e pelo melhor funcionamento do Porto de Luanda".

O senhor foi ministro das Finanças em Portugal e tem uma vasta experiência nesta área. Como olha hoje para a política cambial em Angola, que foi flexibilizada há mais de um ano, levando à desvalorização brutal da moeda nacional?
Embora tenha sido o executor da entrada do Escudo no Sistema Monetário Europeu em Abril de 1992, o que permitiu ser fundador do Euro, a minha especialização académica é precisamente a flutuação cambial. No caso do kwanza, esta permitiu travar uma apreciação real fatal para a diversificação do comércio em bens e serviços que o PRODESI deseja promover. A suspensão da desvalorização em 2016, tecnicamente indefensável, tinha de ser revertida.

Como economista de renome internacional, com experiência governativa, passagem pelo FMI, se fosse ministro das Finanças, que soluções apresentaria para baixar a inflação no País abaixo dos dois dígitos?
As medidas de política monetária visando uma melhor gestão da liquidez e um decréscimo do mercado paralelo deverão finalmente trazer a inflação para baixo, como aliás aconteceu em Portugal no início dos anos 1990. Felizmente ganhámos a luta contra o que chamei "o imposto escondido da inflação", que era visto em Portugal como um problema puramente financeiro e não como sintoma de má governação.

No sentido de melhorar as contas públicas, o Governo está a preparar várias medidas como a privatização em bolsa de dezenas de empresas públicas. Faz sentido a privatização destas empresas em bolsa, quando no País não há essa experiência ainda e não há tradição de apresentação de contas?
Os mercados de capitais são essenciais ao progresso e complementam os bancos. Infelizmente na própria União Europeia estão menos desenvolvidos do que nos EUA, o que levou ao esforço para completar a União Bancária com a União do Mercado de Capitais, mas ambas permanecem incompletas numa altura em que aumentam ameaças externas ao que se tem chamado península do continente euro-asiático.

Angola continua com "dores de crescimento" e até 2022 as taxas de variação dos diferentes PIBs estará abaixo do crescimento da população. Como atenuar este contínuo empobrecimento da população?
Como se sabe, o primeiro Censo da População depois da independência foi realizado em 2014 e os resultados coincidem com os últimas estimativas do PIB, referentes a 2017. As estimativas que constam da base de dados do World Economic Outlook do FMI revelam uma taxa de crescimento constante de 3% ao passo que a taxa média de crescimento do PIB é de 4%. Ainda que a estagnação dos últimos anos seja conjuntural, a sensação de empobrecimento poderá ser mitigada se melhorar a distribuição do rendimento e o combate a corrupção. As reformas estruturais visam não só promover o crescimento mas também reduzir pobreza e desigualdade. Aliás, significativamente, dois dos quatro anexos ao Staff Report que apoia a decisão [do financiamento] referem-se aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e ao PDN, notando que este documento os assumiu mas também que a informação estatística sobre pobreza data de 2009 e não cumpre os padrões internacionais.

Num sector regulado, ter lucro não dá imagem tão negativa como ter prejuízo

Lídia Onde

No âmbito do acordo com o FMI, Angola está a implementar várias reformas, no sentido de diminuir despesa. Assim, até 2020 tem que acabar com a subsidiação aos combustíveis, electricidade, água e transportes públicos. Como mitigar o impacto social da subida dos preços?
Tal mitigação está expressamente prevista no programa. Na apresentação do EFF aos Deputados da Assembleia em 26 de Março passado, chama-se-lhe "função redistribuição do rendimento do orçamento" que, como dito acima, a política orçamental deve proteger. A par da melhoria da qualidade da gestão no sector público e privado, também se pretende reforçar o combate à corrupção, bem como reduzir inflação, depreciação cambial e taxas de câmbio múltiplas.

Como passar para a população a mensagem de que estes ajustamentos são necessários?
A comunicação económica deve ser profissionalizada e o Departamento de Comunicação do FMI facilita muito o trabalho, sem dispensar o trabalho de campo no país. Parece haver consciência disso, na medida em que, na véspera da aprovação do EFF, Angola aderiu ao sistema de disseminação de dados dito e-GDDS e já existiam vários contactos no Banco Nacional. Para ajuizar da abundância de informação oficial, basta consultar o Angola Data Portal. Ainda assim, os dados parecem mais difíceis de exportar para folhas de cálculo do que recorrendo à base de dados do World Economic Outlook. A esse respeito recordo que, em 2001, quando iniciei no Centro de Desenvolvimento da OCDE uma parceria com o Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD), então dirigido por Omar Kabbaj, com apoio da Comissão Europeia, não existiam outras fontes convenientes ao passo que, desde o ano passado, o BAfD assegura essa tarefa e a União Africana (em colaboração com a OCDE) produziu um excelente relatório intitulado Dinâmicas do Desenvolvimento em África: Crescimento, Emprego e Desigualdades, lançado na sede da CPLP em 8 de Abril passado.

Estas medidas justificam que as populações de países que estejam em negociações com o FMI continuem a recear a chamada austeridade? Como contornar estes receios?
A austeridade é uma palavra ambígua que por razões políticas se tornou tóxica no meu país e em tantos outros. A verdade pode não desfazer nem sequer contornar os receios, mas é sempre melhor do que mentira.

O FMI também impõe reformas no sector bancário. O facto de a aposta na divida pública apresentar menos risco do que a concessão de crédito levou a banca a diminuir drasticamente o crédito à economia do País. O que esperar desta intervenção no sector?
Entre os objectivos de política financeira encontra-se o reforço da resiliência do sector, a recapitalização dos bancos mais fragilizados e o Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo, essencial para lidar com bancos americanos.

Apesar da crise, a banca continua a registar crescimento dos seus lucros. Que imagem é que isto passa para o resto do País?
Num sector regulado como o financeiro, ter lucro não dá imagem tão negativa como ter prejuízo, sobretudo quando os prejuízos acabam por ser suportados pelos contribuintes, directa e indirectamente.

Quase trinta bancos num País em que grande parte da sua população não está bancarizada não lhe parece um número excessivo?
Na altura do cessar fogo, Angola tinha-se fortemente urbanizado mas nem por isso vale a pena adivinhar o número ideal de bancos, apenas insistir no perigo de contágio dos bancos bons por um só mau que haja. Lembrar também que os dois objectivos da política financeira mencionados acima (resiliência e recapitalização) visam clarificar situações de fragilidade, como as tiveram consequências trágicas em tantos países, incluindo o meu.

Da Academia à CE e ao FMI

Com um vasto currículo, o professor Catedrático Jubilado da Nova School of Business and Economics, Carcavelos, é sócio da Academia de Ciências de Lisboa, da Académie Royale de Belgique, do Center for Economic Policy Research (Londres), do Center for International Governance Innovation (Waterloo) e do National Bureau of Economic Research (Cambridge).

Foi também ministro das Finanças em Portugal (1991-1993) e presidiu a Comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República (1994/95) e do Centro de Desenvolvimento da OCDE (1998/02). Dirigente na Direcção Geral de Economia e Finanças da Comissão Europeia (CE), trabalhou no FMI e noutras organizações internacionais, foi professor nas Universidades de Yale e Princeton bem como no Institut d'Études Politiques de Paris. Em Angola é membro do Conselho Científico da UCAN desde 2015.


(entrevista publicada na edição 521 do Expansão, de quarta-feira, dia 26 de Abril de 2019, disponível em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)