E depois do adeus?
A afirmação segundo a qual "depois de ... nada mais será igual" aplica-se ao "day after" da pandemia da Covid-19. O título desta reflexão é uma corruptela do sinal que, através da canção de Paulo de Carvalho, transmitida através dos Emissores Associados de Lisboa, desencadeou a revolução de 25 de Abril de 1974.
De acordo com diferentes posicionamentos que se vão conhecendo, pode estar em marcha um verdadeiro movimento revolucionário tendente a alterar e a criar outros fundamentos comportamentais e organizacionais para uma Nova Ordem Mundial. Creio que, se não forem já descobertos medicamentos (a vacina é médio prazo) poderemos estar a assistir à verificação da teoria de Charles Darwin da sobrevivência dos mais aptos e fortes.
No pior dos cenários, metade da humanidade poderá ser seriamente afectada pela pandemia (os de meia idade e os idosos) para que a outra sobreviva. Assim nascerá um mundo novo, um pouco ao jeito de Aldous Axley, só com os mais capazes, os alfas e os betas do seu magnífico livro Admirável Mundo Novo. Ainda que a pandemia seja vencida - restando saber os termos dessa vitória e os respectivos custos (se apenas com ciência médica e farmacêutica, se com holocausto humano) perante o apenas microscopicamente visível, fácil e rapidamente disseminável - filósofos, economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e outros pensadores sociais concordam sobre a irreversibilidade das mudanças, comportamentos, efeitos e consequências da Covid-19. Muita da organização social e económica do anterior ao novo coronavírus se vai perder ou alterar e o que vai ficar vai ser apenas História.
Pode, na verdade, estar-se no limiar de uma Nova Ordem Mundial com uma probabilidade maior de acontecer do que a que se atribuiu à Nova Ordem Económica Internacional dos anos 80 e do tempo de Nasser, Shuarto e outros dirigentes terceiro-mundistas que almejavam, no dealbar das independências dos seus países, a construção de modelos e regimes económicos, se não socialistas, pelo menos menos capitalistas e mais sociais. Igualmente uma mudança na natureza das relações económicas, comerciais e financeiras internacionais, com menos exploração do Terceiro Mundo pelos países mais ricos e desenvolvidos.
Economistas como Arghiri Emmanuel chegaram, mesmo, a falar num proletariado explorador, referindo-se aos benefícios das classes trabalhadoras dos países mais desenvolvidos nas suas relações comerciais com os países menos estruturados. O que não foi possível pelas negociações, argumentações e o deslocamento geográfico de alguns centros de produção, agora um simples vírus parece estar na iminência de o conseguir. Paradoxal? Talvez, mas sem deixar de se pensar que a natureza tem os seus mecanismos de reacção a agressões e a saturação do ambiente às excessivas emissões de carbono pode ter levado ao aparecimento deste vírus ao provocar, como tentativa de debelação da multiplicação dos casos infeciosos, ao confinamento social e à obrigatoriedade de permanência em casa.
Que aspectos podem sustentar esta teoria da emergência de uma Nova Ordem Mundial? Não sei se o mais importante não se vai passar ao nível da reestruturação do sistema produtivo global, com a confirmação do deslocamento de importantes centros de decisão económica e política para a Ásia. Poderá ser o reavivar do confronto entre o "soft power" (China e associados) e o "hard power", simbolizado pelos Estados Unidos e agravado pela desastrosa administração trumpista? A China (contra tudo do que possa ser acusada) aparentemente já saiu da crise sanitária e está a colocar-se na dianteira da recuperação da sua economia, ganhando vantagem na corrida contra os EUA e a União Europeia.
A substituição do trabalho pela tecnologia vai acelerar-se como resultado das medidas de confinamento social e tele-trabalho. A redução do número de horas de trabalho poderá potenciar aumentos de produtividade e propiciar melhor saúde e maior relacionamento inter-familiar, ainda que se possa admitir o surgimento de conflitos desagregadores desta célula básica da sociedade. A melhoria da saúde aumentará a produtividade e reduzirá os custos de manutenção dos sistemas nacionais de saúde. O facto de não se estar habituado a passar tanto tempo confinado às relações familiares pode consequencializar essa desagregação, eventualmente entendida como o custo de se construírem novos modelos de relacionamento mais intimistas e de maior proximidade. Nas sociedades tradicionais africanas este espírito e comportamento gregário ainda prevalece, mesmo ameaçados pelas novas relações de produção de um sistema económico de tipo individualista, onde prevalece o lucro e o sucesso pessoal. Será que a Covid-19 e as medidas associadas de confinamento restaurará e alargará o gregário que existe no angolano?
Revolucionar os sistemas
O uso generalizado de tecnologia nos pagamentos online (também em sociedades menos atraídas por estas adaptações, estas configurações já aparecem, mormente nas muitas startups, cuja pretensão é revolucionarem os sistemas de pagamentos e as modalidades de prestação de serviços) vai ser uma realidade. Mesmo sem medidas de confinamento - acelerativas deste género de mudanças - este standard de micro empresas povoam os tecidos produtivos das nações mais desenvolvidas - é esperável o seu aumento em situações penalizadoras de modalidades de pagamentos de tipo tradicional.
Assim, os futuros tecidos produtivos e de prestação de serviços tendencialmente serão dominados pelas novas tecnologias de pagamentos e encomendas online, com desaceleração do emprego ou, então, mudança dos seus perfis, provavelmente mais exigentes em conhecimento, educação e formação. Os grandes e médios espaços de escritórios estarão ameaçados e com eles, por arrasto, a construção civil (em Luanda e em outras grandes cidades do País, por outras razões, a desocupação deste tipo de espaços é desoladora), sendo também por isso que o sector está em crise, agravável com o adiamento do retorno ao que, saudosisticamente, se vai apelidar de "bons velhos tempos".
O sector do turismo é um dos grandes afectados pelas medidas de confinamento social, interno e mundial, arrastando a aviação civil (as imagens projectadas nas televisões de aeroportos transformados em gigantescos parques de estacionamento de aviões são aterradoras, porque nunca vistas, mesmo em situações de guerra) e as viagens de cruzeiros marítimos (que começavam a inscrever Luanda nos seus roteiros). O Plano Nacional de Fomento do Turismo em Angola acaba de sofrer um tremendo golpe de pelo menos 5 anos, tantos quantos os estudos e estudiosos estimam demorar a recuperação de comportamentos dos viajantes. Mesmo no plano do turismo interno, os receios de contaminação vão prevalecer durante algum tempo, donde hotelaria, restauração, serviços a montante e a jusante acusarão, de forma negativa, as perversidades das medidas de confinamento social anti Covid-19.
Um potencial efeito positivo vai ser a mudança de atitude dos governos com relação à melhoria, reforço e diversificação dos serviços de saúde e dos sistemas de prestação de cuidados preventivos da população. Se os dirigentes políticos em Angola tomarem a sério os sustos (e o trágico panorama internacional) da Covid-19 e acreditando que são honestos (assumpção difícil de aceitar atendendo aos prevalecentes casos de corrupção e de falta de transparência, do conhecimento de todos - um subsídio de renda mensal de 16,9 milhões de Kwanzas para o presidente da Assembleia Nacional não tem classificação na gama de adjectivos da gramática da língua portuguesa), então o modelo de desenvolvimento vai acentuar a sua componente social e de redistribuição do rendimento nacional.
A política monetária poderá ter de abandonar a sua excessiva ortodoxia e voltar-se muito mais para o social e o desenvolvimento económico, descobrindo/inventando novos axiomas e teoremas que substituam as aproximações neo-clássicas e liberais que reforçam as bases capitalistas existentes. Ainda que não venha a ser em toda a extensão desta afirmação, a política monetária neo-liberal tenderá a seguir os novos fundamentos da possível Nova Ordem Global e não voltará a ser a mesma: inflexível, irascível, fechada sobre si mesma e convencida da sua verdade universal.
E o que vai acontecer com os sectores informais das economias, sobretudo em África (em Angola pode chegar a representar 60% da actividade económica geral)?
Ou será que tudo isto é mera especulação e o pós-Covid-19 assistirá a um revigoramento do sistema capitalista mundial e nacional - com mais ou menos tonalidades sociais, o capitalismo é o único sistema de organização e funcionamento das economias - tal como conseguiu sobreviver e robustecer- se face a outras crises mundiais, das quais a mais recente foi a de 2008-2009?
O que não é especulação é a crise económica e social severíssima - que já vem de longe, não sendo cientificamente correcto culpá-la, sistematicamente, com a baixa do preço do barril de petróleo - sem horizonte temporal visível para ser ultrapassada. Segundo os meus cálculos e baseado num simples e modesto modelo de previsão económica dos meus arquivos de Excel, o efeito conjugado redução do preço do petróleo/Covid-19 vai traduzir-se numa quebra de actividade em 2020 de cerca de 4,5%-5,5%, projectando-se apenas para 2025 os sinais de uma recuperação positiva do PIB. Mas tudo vai depender de como a economia e a sociedade se reorganizarão, não valendo a pena, durante este interregno de tempo, pensar- se que a salvação estará no investimento estrangeiro, que não virá (ao menos nas quantidades que os poderes oficiais projectaram e o País desejou).
Portanto, chegou o momento para a agricultura desempenhar o seu papel, desde sempre adiado, e ocupar na estrutura económica e produtiva nacional um peso relativo acima de 15%, conferindo-lhe um lugar especial e passível de ser cumprido, de suporte à diversificação da economia, ao combate contra a pobreza e de melhoria na distribuição do rendimento nacional. Os investimentos, privados e públicos, para que esta alteração estrutural profunda, mas necessária e urgente, ganhe estatuto, podem ser estimados em 145 mil milhões USD até 2030 (13 mil milhões USD por ano) e uma taxa de crescimento média anual de 18,1%. Grandes números para grandes decisões. Alguém terá afirmado que, em situações de crises semelhantes a esta, os países devem ser dirigidos por generais, normalmente não titubeantes na tomada de decisões: podemos esperar isso?