Angola e o Investimento Direto Estrangeiro (2002- –2022): As fronteiras da guerra invisível do capital
Angola, ainda hoje, percorre essa vereda incerta: procura transmutar vulnerabilidade em resiliência, incredulidade em crédito autêntico, e desconfiança em poder duradouro.
O Investimento Direto Estrangeiro, quando cotejado em percentagem do Produto Interno Bruto, não se reduz a mero algarismo de estatística: é epifania cifrada da confiança que o forasteiro deposita no seio de uma nação. Não são capitais que se limitam a transpor fronteiras, antes se enraízam como árvores milenares - erguendo fábricas do nada, erigindo pontes e estradas, explorando minas abissais, comandando fortalezas bancárias. É, pois, índice da crença e, simultaneamente, sinal do receio.
Em Angola, no arco temporal que medeia entre 2002 e 2022, o IDE traçou uma crónica sinuosa de assaltos e deserções, de súbitas euforias e recuos desolados. Uma saga de fluxos pecuniários que, ora desembarcavam com a ousadia de exércitos conquistadores, ora se retiravam em debandada, como hostes derrotadas pelo infortúnio. Cada fase ergueu-se como clarim de advertência no vasto campo da guerra financeira, onde as máximas da economia se confundem com as máximas da estratégia militar.
FASE I | 2002-2004 O fervor da confiança pós-guerra
A confiança é o verdadeiro capital de um povo; sem ela, nem o ouro mais reluzente vale coisa alguma. Máxima de sabedoria económica
O silenciar das hostilidades, em 2002, rasgou no horizonte um ciclo de esperança inaudita. O Investimento Direto Estrangeiro, qual maré ascendente, elevou-se a 11% do Produto Interno Bruto, galgou em 2003 a cifra estonteante de 20% e, no ano seguinte, serenou nos 9%, como marulhar que repousa após a tempestade. Eram dias em que Angola se oferecia ao olhar do mundo como terra virgínea de infinitas promessas, onde o petróleo, com o fulgor de ouro negro, atraía conglomerados como ferro ao íman irresistível. O capital estrangeiro corria então como rio caudaloso, inundando margens sedentas de reconstrução. Construtoras erguendo pontes e cidades, bancos instalando as suas cidadelas de crédito, petrolíferas sulcando o subsolo e mineradoras cravando-se nas entranhas da terra - todos se digladiavam por assento neste banquete inaugural.
A nação surgia, aos olhos dos investidores, como fortaleza recém- -revelada no coração de África: muralhas levantadas com pedra emprestada, mas sustentadas pelo ânimo colossal de um povo que, mal saradas as feridas da guerra, ousava sonhar com grandeza.
FASE II. | 2005-2007 O refluxo da esperança
Não confies cegamente nos aplausos dos mercados: eles mudam de voz ao menor sinal de tempestade. Eco de prudência mercantil
O fulgor primitivo começou a desvanecer-se como lume que se apaga ao vento. Em 2005, o Investimento Direto Estrangeiro precipitou-se em abismo, fixando-se em -3,5% do Produto Interno Bruto, e arrastou-se, nos anos ulteriores de 2006 e 2007, entre -0,07% e -1,36%. O que outrora se anunciava como abundância transfigurava-se em desconfiança. Multinacionais, impacientes, apressavam-se a repatriar dividendos; outras, hesitantes e receosas, adiavam empreendimentos que antes haviam julgado promissores.
As causas eram múltiplas e insidiosas: uma burocracia asfixiante, a centralização sufocante do poder, desigualdades sociais que minavam a coesão e a paz pública. O país, embora agraciado pelo manancial de petróleo, não lograva oferecer nem diversificação económica, nem segurança regulatória. Era como cidadela ainda em construção, mas cujas muralhas, erguidas com pressa, já apresentavam fendas e fragilidades.
FASE III. | 2008-2012 Recuperação instável e ilusões efémeras
Quem não diversifica a sua frente de batalha acaba por ser vencido no único flanco que defende. Estratégia inspirada na arte da guerra
Entre 2008 e 2012, o Investimento Direto Estrangeiro vacilou como soldado hesitante diante do campo de batalha: avançou com sinais positivos em 2008 (+1,8%) e 2009 (+3,1%), mas recuou derrotado em 2010 (-3,8%), 2011 (-2,7%) e 2012 (- -1,1%). Angola, ainda inebriada pelo esplendor petrolífero, não lograva persuadir o estrangeiro de que o seu solo era fértil para outras colheitas além do crude.
As cicatrizes da crise financeira global de 2008, qual vento gélido que atravessa muralhas, arrefeceram o ímpeto dos investidores e retraíram os fluxos de capitais. Algumas telecomunicações e empreitadas públicas ousavam, ainda assim, abrir brechas ténues na muralha da desconfiança, como clarões num céu toldado. Todavia, a nação permanecia cativa da sua monocultura económica, refém do ouro negro que lhe sustentava o fôlego.
A lição erguia-se severa e irrefutável: sem diversificação, cada triunfo era efémero, tão ilusório quanto miragem que se dissipa nas areias ardentes do deserto.
FASE IV. | 2013-2017 Entre a ilusão e o colapso
Os mercados podem permanecer irracionais mais tempo do que tu podes permanecer solvente. John Maynard Keynes, economista, séc. XX Entre 2013 e 2017, Angola experimentou a amarga dialéctica da contradição.
Em 2013, o Investimento Direto Estrangeiro precipitou-se a -5,3%; em 2014, ergueu-se timidamente para +2,6%; em 2015, conheceu um fausto ilusório de +11%, apenas para, em 2016, declinar a -0,3% e, em 2017, tombar no abismo com um descalabro de -10%. A dependência petrolífera, elevada a culto fatal, revelou-se veneno lento: quando os preços do crude se desmoronaram entre 2014 e 2016, a confiança dos investidores evaporou-se como neblina ao sol nascente. O auge de 2015 não passara do estertor tardio de contratos firmados em tempos mais propícios, resquícios de um passado já condenado. Logo, a muralha de expectativas ruiu, arrastando consigo a fé do capital estrangeiro. As gruas, outrora em riste como lanças altivas, converteram-se em esqueletos enferrujados; os estaleiros, antes fervilhantes, tornaram-se desertos inertes. Angola, que fora imã de cobiças, transformou-se em terra evitada, espectro de promessas não cumpridas.
FASE V | 2018-2022 A era do descrédito e da pandemia
Não olhes para trás com nostalgia, nem para a frente com receio; olha em redor com frieza e calcula o que te resta de forças. James Thurber, escritor e ensaísta, séc. XX.
Com a ascensão de João Lourenço, em 2017, ergueu-se o brado contra a corrupção e proclamaram-se promessas de reforma. Contudo, o capital estrangeiro não regressou em ondas redentoras; antes se retraiu, deixando um rasto de ausências. De -8,1% em 2018 a -6,3% em 2022, passando pelos -5,7% de 2019 e pelos -6,5% de 2021, o desinvestimento tornou-se marca indelével do tempo, como cicatriz que não se fecha. A pandemia da Covid-19 não fez senão agravar esta marcha de retração, impondo clausura às economias e temor aos investidores.
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