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Opinião

As verdades incómodas do Censo 2024: Terra, habitação e juventude em risco

MILAGRE OU MIRAGEM?

Ter mais de um milhão de jovens analfabetos deveria ser motivo de profunda preocupação nacional. Valores como democracia, Estado de direito e economia de mercado exigem níveis mínimos de literacia para serem implementados e sustentados. Por outras palavras, não se cria um Estado de Direito e uma economia de mercado com altos níveis de analfabetismo.

Em Novembro, o INE divulgou os resultados definitivos do Censo 2024. Apesar das críticas quanto à fiabilidade de alguns números, vale analisar dados que merecem especial atenção por parte da governação. Da nossa leitura inicial, destacam-se os Quadros 9.10 e 9.11. No que diz respeito à "Situação de posse de parcela/lavra em algum membro do agregado familiar", 3.323.242 agregados familiares afirmaram possuir uma parcela, enquanto 5.766.495 disseram não possuir.

Entre as famílias com parcela ou lavra, o Quadro 9.11 revela que todas estas 3.323.242 famílias declaram praticar agricultura. A ser exacto, este dado é surpreendente: não haveria, portanto, nenhuma parcela de terra ociosa no país! No nosso último texto analisámos o aumento da fome em Angola, com base nos dados do Índice Global da Fome (IGF) 2025, também destacado pelo Expansão.

O retrocesso verificado (a fome aumentou quatro pontos, passando de 25,7 em 2016 para 29,7 em 2025) deveria merecer atenção prioritária da governação e da sociedade, na busca urgente de soluções.

Se o Censo mostra que as famílias que possuem terra efectivamente a trabalham, cabe ao Estado identificar formas de ajudá-las a aumentar a produtividade (tonelada/hectare), deixando a produção essencialmente de autoconsumo e avançando para a produção orientada ao mercado.

A experiência recente de países asiáticos demonstra que este salto dificilmente ocorre de forma espontânea: não é um processo guiado exclusivamente pelo mercado; exige intervenção activa do Estado. A titularização destas parcelas permitiria às famílias usar a terra como colateral para obter financiamento bancário.

É igualmente necessário estimular o surgimento de serviços que apoiem o aumento da produtividade: assistência técnica, sementes melhoradas, adubos e fertilizantes, maquinaria agrícola e, sobretudo, equipamentos de irrigação. Os dados oficiais indicam que grande parte dos agregados pratica agricultura de sequeiro.

Considerando os efeitos das alterações climáticas e a existência de rios de caudal permanente, um dos maiores activos naturais de Angola, é fundamental que as famílias possam adoptar sistemas de irrigação e garantir produção ao longo de todo o ano. O uso de irrigação implica acesso à energia eléctrica.

O discurso político tem sublinhado que Angola produz actualmente mais energia do que consome, embora faltem investimentos em transporte e distribuição. Ainda assim, a existência de capacidade instalada cria oportunidade para que investidores privados possam beneficiar do aumento da procura potencial gerado pelo uso crescente de equipamentos de irrigação.

Sobre a titularização, o Censo revela ainda que 74,2% dos agregados familiares (6.747.694) declararam ser proprietários da sua habitação. Este dado reforça a tese de diversos especialistas: Angola possui uma riqueza latente no sector imobiliário que não está ao serviço da economia devido a falhas de governação. Se estas famílias investiram as suas poupanças na aquisição de uma casa, deveriam poder utilizá-la como colateral para financiar actividades produtivas, o que hoje não acontece porque grande parte delas não possui título de propriedade formal.

Outro dado relevante dos resultados do Censo diz respeito ao número alarmante de jovens entre os 15 e os 24 anos que não sabem ler. Nesta faixa etária, Angola conta com 7.889.167 jovens, mas apenas 5.906.643 sabem ler (Quadro 8.2). Ou seja, cerca de 1.982.524 jovens não possuem competências básicas de literacia (ver Gráfico 1), dos quais 851.473 são homens e 1.131.051 são mulheres (ver Gráfico 2).

Ter mais de um milhão de jovens analfabetos deveria ser motivo de profunda preocupação nacional. Valores como democracia, Estado de direito e economia de mercado exigem níveis mínimos de literacia para serem implementados e sustentados. Por outras palavras, não se cria um Estado de Direito e uma economia de mercado com altos niveis de analfabetismo.

Em suma, apesar das críticas, os dados do Censo 2024 revelam claramente o quanto ainda precisa ser feito para que Angola se torne um país bom para se viver, para os angolanos e para todos aqueles que escolheram chamar esta terra de casa.

Edição 855 do Expansão, sexta-feira, dia 05 de Dezembro de 2025

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