A tragédia dos números!
As famílias angolanas vivem em insegurança alimentar, a indústria alimentar e de bebidas dependem das importações e no entanto o INE diz que o sector agrícola deu um "salto da gazela"! Acreditamos que a governação em Angola precisa colocar a produção de dados fiáveis no topo das suas prioridades.
A produção de dados estatísticos fiáveis e atempados é um instrumento essencial para a definição de metas concretas - como no processo de diversificação económica - e para a tomada de decisões eficazes. No caso de Angola, onde o desafio de transformar a estrutura económica é profundo e urgente, sobretudo através do aumento da liberdade económica dos cidadãos, a governação não tem alternativa senão investir seriamente na qualidade e transparência da produção de dados estatísticos.
A experiência africana mostra que este não é um problema exclusivo de Angola. A literatura especializada evidencia que a fragilidade na compilação de dados estatísticos é quase generalizada no continente, com algumas excepções. Na obra Poor Numbers: How We Are Misled by African Development Statistics and What to Do About It, Morten Jerven aprofunda precisamente este fenómeno, mostrando como dados imprecisos distorcem diagnósticos e políticas públicas.
Em Angola, a produção de estatísticas oficiais sofre particularmente em anos eleitorais. Um exemplo marcante ocorreu nas eleições de 2017, quando o Instituto Nacional de Estatística (INE) não publicou, no prazo previsto, que o PIB de 2016 tinha recuado -2,58%. Em vez disso, apresentou provisoriamente um crescimento de 0,1%, valor posteriormente revisto e corrigido após as eleições. Em trabalho de campo realizado em 2018, questionámos directamente a liderança do então Ministério do Planeamento e Desenvolvimento Territorial sobre este episódio, sem obter resposta.
blicou as Contas Nacionais Anuais de 2015-2024, actualizando o ano-base de 2002 para 2015 e migrando do Sistema de Contas Nacionais (SCN) 1993 para o SCN 2008. A alteração provocou mudanças significativas na estrutura sectorial do PIB: a agricultura e silvicultura passou de 10% para 19% (+9 pp), enquanto o sector extractivo caiu de 29% para 19% (-10 pp), cf. Gráfico 1. Hoje, segundo o novo quadro, três sectores dividem protagonismo na economia nacional - agricultura (19%), extractivo (19%) e comércio (19%) - seguidos pela administração pública, defesa e Segurança Social obrigatória (8%) e pela indústria transformadora (7,6%).
O crescimento súbito do peso da agricultura, igualando o sector extractivo e o comércio, levanta questões. Não encontramos evidências empíricas que sustentem tal "salto da gazela". Nos nossos trabalhos de campo pelo interior do país, registámos alguma produção, mas longe de justificar tal aumento. Convém recordar que, desde 2002, a despesa pública orçamentada (não aquela executada) dedicada à agricultura nos orçamentos gerais do Estado raramente ultrapassou 5%. De onde terá surgido este crescimento espectacular?
Entre 2008 e 2024, o sector agrícola passou de 7,09% para 19,15% do PIB (+12 pp). Este período, no entanto, ficou marcado por insucessos de projectos públicos emblemáticos, como a Aldeia Nova, o Projecto Agro-Industrial da Quiminha, os perímetros irrigados (onde destacamos o da Matala e do Kikuxi), e as sete grandes fazendas financiadas pela linha de crédito da China. Sem indústria transformadora nacional para fornecer insumos (fertilizantes, pesticidas, maquinaria), e estando consciente que a indústria alimentar e de bebidas dependem muito das importações, é legítimo questionar onde está a produção que as estatísticas dizem existir.
A nossa leitura é que este ajustamento estatístico serve mais para alinhar os números ao discurso político do que para reflectir a realidade produtiva. O próprio Relatório sobre a Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (Janeiro de 2023, publicado pelo INE no passado dia 1 de Agosto) revela, na pág. 14, que 76,9% dos agregados familiares vivem em insegurança alimentar moderada ou severa. Apenas 23% estão em segurança alimentar ou enfrentam insegurança leve. Em termos práticos, sete em cada dez famílias consomem alimentos de baixa qualidade e, possivelmente, em menor quantidade do que o necessário.
A questão é inevitável: se o sector agrícola registou um crescimento tão expressivo no período pós-guerra, porque não se traduziu isso em mais e melhores alimentos na mesa das famílias angolanas? A incongruência entre estatísticas e realidade é um alerta: sem dados sólidos, não há diagnóstico confiável nem políticas eficazes para atingir metas como o ODS 2 - erradicar a fome, garantir segurança alimentar e promover agricultura sustentável. Resumindo, as famílias angolanas vivem em insegurança alimentar, a indústria alimentar e de bebidas dependem das importações e no entanto o INE diz que o sector agrícola deu um "salto da gazela"! Acreditamos que a governação em Angola precisa colocar a produção de dados fiáveis no topo das suas prioridades.