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"O País, como está, não permite a ninguém sonhar com nada"

Ana Clara Guerra Marques

É a fundadora da primeira Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC) que comemora em Dezembro 30 anos de existência. Em entrevista ao Expansão, a artista fala do percurso e dos principais desafios da dança no País

Com oito anos de idade teve o primeiro contacto com a dança. Como entra para esta arte?

Entrei para a dança pela mão dos meus pais que acharam esta actividade importante para o complemento da minha formação enquanto ser humano.

De aluna para directora da escola de dança. Como foi gerir uma instituição aos 15 anos?

Difícil, mas determinante para a minha personalidade, o meu olhar sobre o País, sobre as pessoas e sobre o mundo. Com António Jacinto, que era na altura o responsável governamental da Cultura, percebi o que era o espírito de missão e o irrecusável dever de a cumprir, sob pena da escola encerrar. Não foi fácil perceber que não havia interesse em desenvolver as artes a nível profissional e académico e que o acervo tradicional era colocado em oposição. O facto de ser muito jovem, muito organizada, muito determinada e muito rigorosa não jogou a meu favor, mas acho que venci pela resiliência e pela determinação!

Passados mais de 50 anos desde que teve o primeiro contacto com a dança, como descreve o percurso da dança angolana?

Perdemos demasiado tempo, não apenas com discussões estéreis e indecisões por ausência de conhecimento e falta de confiança nos nossos quadros de maior formação, competência ou experiência, mas, sobretudo, com populismos e promoção da falta de qualidade. Os resultados estão à vista, não avançámos quase nada em termos de qualidade e profissionalismo. Poderíamos ter hoje várias gerações de profissionais com formação académica e artística. Não temos uma classe de profissionais de dança. Não temos várias companhias de dança. Temos alguns jovens bailarinos e coreógrafos a trilhar um caminho difícil lutando para desenvolver o seu trabalho com dignidade. Mas o mais grave é não termos um ensino alinhado com os padrões científicos universais e esperados de uma instituição de ensino profissional.

Acha que a dança hoje, no País é valorizada da forma como deveria?

Na minha perspectiva, enquanto profissional, este lado da dança, enquanto área de conhecimento e de saber especializado, continua a não ser suficientemente valorizado. A inexistência de estruturas / equipamentos para o desenvolvimento da actividade artística é indício dessa falta de valorização. A própria CDC Angola, companhia histórica e com reconhecimento internacional, desenvolve o seu trabalho em condições precárias. Por outro lado, porque grande parte das pessoas não foi ensinada a perspectivar a dança de uma forma abrangente, considerando os seus múltiplos contextos e abordagens.

Esta foi a república com que sonhou?

Não, tal como para aquelas pessoas da minha geração que escaparam à tentação do poder e da ganância e que sacrificaram a sua juventude na esperança de construir, ver e viver num país novo, livre e verdadeiramente independente. A corrupção e a inabilidade política para resolver as injustiças e as assimetrias que o colonialismo deixou são de grande violência para quem aprendeu a entregar-se incondicionalmente ao sonho. Ver a demagogia, a falta de escrúpulos e o aproveitamento político esvaziar os nossos valores morais e identitários, atentando contra as nossas liberdades pessoais; ver as pessoas com fome, as crianças doentes povoando os montes de lixo, perante a quase indiferença dos decisores, é cruel e revoltante. Apesar da guerra, poderíamos ter feito melhor se não fosse a ganância insensível dos que apenas souberam distribuir aflições. Prova de que este país também não é o sonho das actuais gerações são as manifestações de revolta, os artigos de alguns jornalistas, escritores e artistas que se vão erguendo num activismo tão corajoso e menos clandestino do que o vivido no tempo colonial.

Com a pandemia, como é que Companhia de Dança Contemporânea de Angola se tem financiado?

Mesmo antes da pandemia, a CDC Angola nunca foi, propriamente, um alvo das atenções institucionais. Além de apoios pontuais para as nossas digressões e temporadas, a CDC Angola é suportada, há já diversos anos, pelo Banco BAI, que mantém este apoio sem o qual a companhia já se teria extinto. Todavia, a inflação aumentou, o que nos colocou numa situação delicada, dado que a lei do Mecenato não está a ser aplicada. Assim, e embora não deixemos transparecer pois temos outras valias, nomeadamente a capacidade profissional dos nossos integrantes para produzir, organizar, divulgar, ensaiar, ensinar, coreografar e dançar, a CDC Angola encontra-se, neste momento, numa situação extremamente delicada. Há um incentivo que é vital para nós.

Como vê a actual situação da produção artística, em geral, no País?

A produção é intensa, o que não significa de qualidade. Espanta-me até que se produza tanto! A verdade é que depois se apresentam resultados de um trabalho não amadurecido. Mas continua a haver algumas bolsas de um trabalho artístico de alcance intelectual e com uma qualidade artística e técnica consideráveis. Creio que é no campo das artes visuais que se encontra a produção com mais consistência. A ausência de teatros e salas de espectáculo e de uma crítica especializada também contribuempara que a actividade artística seja menos expressiva.


Acha que o mundo ainda vê Angola como um país africano remoto e primitivo no campo da produção artística? Se sim, como contornar essa situação?

Felizmente nem tudo é mau e temos artistas em todas as áreas que orgulham Angola pela sua dignidade e pela qualidade da sua produção considerada em qualquer parte do mundo! Todavia, nós alimentamos essa imagem "folclorizada" e inventada pelo "Ocidente" ao "vendermos" uma Angola com danças de movimentos pélvicos "sensuais", com saias de ráfia ou pele e ao som do dito "tam-tam". Não tendo as nossas danças, necessariamente, essas características temos de ser honestos e rigorosos, contornando a situação pelo estudo rigoroso das danças junto das comunidades portadoras e não apenas imitar e inventar. O ideal seria existir um banco de dados a partir de um trabalho de pesquisa realizado por investigadores de diversas áreas. Por outro lado, acho que o estado devia impulsionar e apoiar sem reservas o movimento artístico contemporâneo como estão a fazer outros governos em África onde a dança contemporânea ganha cada vez mais expressão porque existe a consciência de que estamos no século XXI.

(Leia a entrevista integral na edição 621 do Expansão, de sexta-feira, dia 23 de Abril de 2021, em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)