Portugal e Angola: uma relação económica de amor e ódio
Nos últimos dias, as relações entre Angola e Portugal, ou vice-versa, esfriaram e surgiu uma polémica por causa do alarido da imprensa portuguesa sobre supostos processos judiciais contra dirigentes angolanos.
A polémica tomou proporções tais, que o Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, anunciou o fim da parceria estratégica entre os dois países. O anúncio do fim dessa relação privilegiada não pegou de surpresa muita gente.
O problema que se coloca, e tão empolado pela imprensa em Portugal, não é a origem nem a licitude do capital angolano lá investido. Esta é outra novela. O problema é muito mais profundo e tem origens históricas.
Nós, os angolanos, não somos, nem nunca fomos, lindos aos olhos de Portugal, principalmente para uma determinada elite. E há razões históricas de sobra, pelo menos do lado de Angola, que mostram que devemos caminhar com mais cautela nesta relação.
O jornalista português Celso Filipe, no seu livro, recente, intitulado O Poder Angolano em Portugal, expressa com precisão o ideário desta elite lisboeta. Neste livro, o subdirector do Jornal de Negócios dá pistas interessantes que podem ajudar-nos a entender e a traçar melhor a nossa relação com Portugal e os portugueses.
A maldição, passada e recente, dessa relação apela-nos à precaução. Angola, em qualquer circunstância, deve escolher bem o que convém. Todo o cuidado é pouco. Enganam-se aqueles que nutrem a ilusão de que, nas relações entre países, os interesses não contam.
O exemplo vem da própria Europa. Na nossa relação com Portugal sempre prevaleceu aquela visão do Ocidente em relação ao outro. Ela nunca se alterou. O que está em causa, no fundo, não é a licitude ou não do dinheiro investido em Portugal. O que está e continua difícil, para alguns, em Portugal, é digerir alguma supremacia dos ex-colonizados.
Muitos portugueses acham-se perdedores e vivem desagradados, magoados e humilhados por Angola. É um pesadelo fundado na base do preconceito que vem lá de trás. Esta convivência tortuosa, entre nós e eles, começou com a invasão de Diogo Cão ao nosso território, em 1582. De lá para cá, angolanos e portugueses sempre se relacionaram na base do desrespeito, de inverdades e inimizades.
Aquelas relações, sustentadas em falsidades e mentiras, tendem a manchar toda a tentativa de construção de um novo modelo de relacionamento comum. Hoje, Angola, para além de ser hospitaleira, oferece aos portugueses óptimas oportunidades económicas, difíceis de serem encontradas em Portugal.
Aliás, os portugueses sabem que encontram, aqui, um mercado melhor para investirem e fazerem dinheiro mais rápido, ao contrário do que ocorre em Portugal. O mercado angolano dá brechas para isso, e é fértil para quem vem de um mercado tão competitivo quanto o europeu. Angola é, para muitos cidadãos de outras paragens, um eldorado.
O que está aqui em causa não é o investimento estrangeiro e a mão- -de-obra especializada, tão necessária para alavancar a nossa economia. Os nossos amigos portugueses sabem que se dão bem aqui. Há mesmo quem diga que eles já são da família. Que o digam os nossos compatriotas de Benguela, Huambo, Lubango, de Malanje ou de Luanda.
Eles deram-se bem aqui, principalmente, nos sectores de serviços e da construção civil, e estão em vantagem. Quando não são gestores, são donos. O nosso mercado favorece-os. E, já agora, como estão os angolanos lá do outro lado? Quantos angolanos, pedreiros ou licenciados, prosperaram em Portugal? Quantos angolanos, ao longo dos anos de emigração em Portugal, se tornaram gerentes ou proprietários, ou coisa parecida? Não há memória sobre algum caso.
Tudo isso acontece, porque há, também, do lado de cá, do nosso lado, uma tendência preconceituosa de inferioridade em relação aos europeus e, em particular, aos portugueses. Aqui, no nosso País, em muitas ocasiões ser-se europeu já é certificado de competência.
E há mesmo, em alguns sectores, uma tendência crescente de privilegiá-los. Hoje, fala-se, por exemplo, que vivem e trabalham, em Angola, cerca de 150 mil portugueses. Onde é que eles vivem? Não importa a profissão e o trabalho, eles estão aqui no topo da pirâmide social.
Muitos chegam, trabalham por conta de outrem e, meia dúzia de anos depois, já são proprietários. Esta quantidade, que não quer dizer necessariamente qualidade, de portugueses endinheirados, ou não, não vive nos nossos musseques.
Quase todos eles vivem nos grandes centros urbanos. Eles vivem bem, são protegidos. E o inverso? Quantos angolanos vivem em Portugal como milhares de portugueses vivem em Angola? Esses e outros factores, muitas vezes, colocam-nos económica e politicamente, na relação com Portugal, do lado da subalternidade.
Como se pode concluir, as relações entre Angola e Portugal nunca foram saudáveis ao longo dos tempos. O livro de Celso Filipe mostra essa visão que alguns portugueses têm em relação aos angolanos e a África, em geral.
Se há interesse em alterar essa relação para sedimentar os novos tempos, ela deve assentar na paridade. As nossas relações, como as relações entre Estados e povos, devem fundar-se na base do respeito e de interesses mútuos.
A visão baseada na supremacia deve cessar. Porque o mundo, como disse o ministro George Chicoty, não se esgota em Portugal. Os ressentimentos que algumas figuras em Portugal nutrem contra Angola devem esvair-se quando há um interesse maior dos dois povos.
O momento económico de cada um dos países deve ser aproveitado para que se estabeleçam balizas daquilo que é melhor para cada um. Na verdade, muito mais do que isso, Portugal e Angola, ou Angola e Portugal, precisam de clarificar muito bem o tipo de relações que pretendem construir daqui em diante. Esta relação de amor e ódio deve ficar para trás.
Temos de construir uma nova relação baseada no respeito mútuo, na paridade e no reconhecimento das diferenças. É preciso fazer um esforço e realizar um bom trabalho, quebrar os preconceitos ainda subjacentes. Portugal tem o maior fardo. Tomara que, um dia, tudo volte aos trilhos, e os alorpados não venham estragar tudo de novo.