Actuação da Reserva Alimentar "prejudica" produtores nacionais
Em ano de eleições e de altos preços do petróleo no mercado internacional, a Reserva Estratégica Alimentar recebeu elevadas dotações orçamentais que foram utilizadas, quase sempre, para financiar as importações de produtos da cesta básica, o que não agrada aos empresários do sector, que não conseguem escoar a sua produção e deixam de produzir na campanha agrícola seguinte.
Depois de um ano de trabalho da Reserva Estratégica Alimentar (REA), que começou a funcionar em Dezembro de 2021, os produtores nacionais dizem-se apreensivos com as políticas implementadas até ao momento. Apesar de já terem sido adquiridas 60 mil toneladas de milho produzido em Angola, o recurso excessivo às importações teve um impacto negativo nas margens dos produtores nacionais. Esta realidade fez com que os principais investidores no sector agro-alimentar levantassem "a bandeira amarela", segundo Wanderley Ribeiro, empresário e presidente da Associação Agro Pecuária de Angola (AAPA).
Com receio de perdas e prejuízos associados à dificuldade de escoamento da produção, o contexto pode resultar num menor investimento e na redução da produção nacional, sobretudo do milho, que serve de base alimentar para boa parte da população e ainda para a produção de ração destinada à pecuária e avicultura.
"Não temos dados concretos, o que posso dizer é que este contexto deu origem a uma bandeira amarela, digamos assim, da parte dos produtores. Devido às importações da REA, o preço do milho desceu tanto nos últimos meses que colocou em causa a actividade empresarial. A REA deve actuar como instrumento de regulação dos preços. Mas neste momento funciona como central de compras no exterior ou como importador oficial do País", lamenta Wanderley Ribeiro em declarações ao Expansão.
Para o líder associativo e empreendedor no sector do agro-negócio, a REA "precisa de se focar na gestão dos excedentes" e funcionar "como instrumento de regulação do mercado", sobretudo quando os "preços sobem muito ou descem muito".
No caso do milho, a situação é relativamente fácil de explicar. Nos primeiros meses do ano, a AAPA identificou 60 mil toneladas de milho acumuladas junto dos grandes produtores devido às dificuldades de escoamento. Ao mesmo tempo, a REA começou a adquirir milho e outros produtos no exterior do País, o que fez cair os preços. "Sabemos que a REA terá de recorrer às importações. Isto é pacífico. Mas devemos também entender que produzir em Angola é mais difícil do que noutros países. Por isso, é natural que o milho nacional seja mais caro do que o importado. O que nós defendemos é que o Governo esteja atento a estas questões, por exemplo, com a definição, no início de cada campanha agrícola, de preços mínimos para os diferentes produtos", explica o presidente da AAPA.
Tendo em conta esta realidade, a associação endereçou uma carta ao Governo a denunciar a situação. E só assim foram desbloqueadas as 60 mil toneladas de milho que estavam sem comprador, naquela que foi a primeira compra interna da REA. A descida dos preços é positiva para os consumidores e para o controlo da inflação, no entanto, é importante que exista um equilíbrio entre os custos de produção e o preço final.
Wanderley Ribeiro discorda também da tutela da REA estar concentrada no Ministério da Indústria e Comércio. "Existe um buraco entre a REA e o Ministério da Agricultura e Pescas, que dirige a actividade agrícola no País. Isto depois tem consequências negativas. Por exemplo, a compra das referidas 60 mil toneladas de milho foi concluída já em cima do início da campanha agrícola, com efeitos negativos para os empresários. As instituições precisam de estar mais atentas", defende.
O Expansão tentou contactar inúmeras vezes, por diversos meios o PCA da REA Eduardo Machado, explicando que pretendia explicações face ao trabalho que estava a fazer, mas nunca recebeu resposta.
Dotações milionárias
Também parece evidente que a actividade da REA em 2022 foi demasiado afectada pelo calendário político - com a realização das quintas eleições gerais em Agosto - e com a necessidade de o Governo de João Lourenço mostrar serviço e aligeirar as condições de vida da população. Ao mesmo tempo, com o início da guerra na Ucrânia, os preços do barril de petróleo dispararam e o Kwanza apreciou 28% entre Dezembro de 2021 e Setembro de 2022. Uma espécie de tempestade perfeita para os cofres nacionais.
Com mais dinheiro disponível, a tentação de intervir no mercado para baixar os preços da cesta básica foi imparável. Segundo o Relatório Mensal de Preços dos Produtos de Preços Vigiados do Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE), entre Dezembro de 2021 e Setembro de 2022, o preço médio do arroz, feijão catarino e manteiga, farinha de trigo e fuba de milho caíram em média 12%.
Estas iniciativas e o contexto nacional e internacional beneficiaram claramente a REA e os seus gestores (a GESCESTA, que inclui o grupo Carrinho e a Gemcorp, embora o responsável máximo tenha confirmado ao Expansão há cinco meses que a Gemcorp nunca tinha assumido a sua participação e a gestão era feita exclusivamente pela Carrinho).
Só em Diário da República, é possível identificar cinco financiamentos que totalizam 175 mil milhões Kz, ou seja, cerca de 350 milhões USD ao câmbio actual durante 2022. Em Maio, só para a Reabilitação e Expansão das infra-estruturas de apoio à gestão da REA foram atribuídos 24 mil milhões Kz, depois reforçados com mais de 32 mil milhões Kz para abertura de linha de crédito entre a REA e o BFA e 35 mil milhões Kz de crédito adicional para subsídios a preços de produtos da cesta básica.
A referida Gescesta foi constituída em Maio de 2021 com um capital social de 100.000 Kz e dois accionistas, cada um com uma participação de 50%: Gemcorp, polémica entidade de origem russa (mas registada em Malta) conhecida pelo envolvimento pouco claro em vários negócios com recursos públicos angolanos, e a empresa Tools and Foodservice, registada no Lobito, província de Benguela, de onde também é originário o Grupo Carrinho.