Leia a carta em que Bill Gates afirma que a pobreza mundial pode acabar em 2035
O homem mais rico do mundo, fundador da Microsoft, defende na carta anual da Fundação Bill e Melinda Gates que é possível erradicar a pobreza, mas aponta "três mitos" que estão a dificultar a batalha. Reproduzimos o documento na íntegra.
"3 MITOS QUE BLOQUEIAM O PROGRESSO DOS POBRES
Quase todos os indicadores apontam para um mundo melhor do que nunca. As pessoas têm vidas mais longas e saudáveis. Muitos países que recebiam assistência hoje são autossuficientes. Poderíamos pensar que esse progresso impressionante seria amplamente celebrado, mas, na realidade, a Melinda e eu ficamos impressionados com a quantidade de gente que acha que o mundo está a ficar pior. A percepção de que o mundo não pode resolver as questões de pobreza extrema e doenças não apenas é errada - também é prejudicial. É por isso que, na carta deste ano, desmontamos alguns dos mitos que entravam o trabalho. Esperamos que façam o mesmo da próxima vez que ouvirem esses mitos. - Bill Gates
MITO 1: PAÍSES POBRES ESTÃO CONDENADOS A CONTINUAR POBRES
Tenho ouvido esse mito citado em muitos lugares, a maioria em África. Uma breve busca na Internet produz dezenas de manchetes e títulos de livros: "Como os países ricos ficaram ricos e os países pobres continuam como estão", "Por que os pobres permanecem pobres", etc.
Felizmente esses livros não são best-sellers, pois a premissa básica é falsa. O facto é que rendas e outros indicadores de bem-estar humano estão a aumentar em quase toda a parte, inclusive em África.
Então porque é que esse mito está tão arraigado?
Passaremos a África daqui a pouco, mas examinemos a tendência mais ampla em todo o mundo há meio século. Há cinquenta anos o mundo estava dividido em três partes: Estados Unidos e aliados ocidentais; a União Soviética e seus aliados; e todos os demais.
Nasci em 1955 e cresci aprendendo que o chamado Primeiro Mundo estava bem na vida ou "desenvolvido". Quase todos no Primeiro Mundo iam à escola e tinham vidas longas. Não sabíamos exactamente como era a vida atrás da Cortina de Ferro, mas parecia ser um lugar assustador. E havia o chamado Terceiro Mundo - basicamente todos os demais. Pelo que sabíamos, estava cheio de gente pobre que não ia muito à escola e morria jovem. O pior é que estavam encurralados na pobreza, sem esperança de melhorar.
As estatísticas confirmam essas impressões. Em 1960, quase toda a economia global estava no Ocidente. A renda per capita nos Estados Unidos era de cerca de US$ 15.000 por ano.1 (Trata-se de renda por pessoa e, portanto, US$ 60.000 por ano para uma família de 4 pessoas). Na Ásia, África e América Latina, as rendas por pessoa eram muito mais baixas. Brasil: US$ 1.982. China: US$ 928. Botsuana: US$ 383. E assim por diante.
Anos depois, ao viajar, eu veria essa disparidade pessoalmente. A Melinda e eu visitamos a Cidade do México em 1987 e ficamos surpresos com a pobreza. Não havia água corrente na maior parte das casas e as pessoas deslocavam-se por longas distâncias de bicicleta ou a pé para encher garrafas com água. Parecia o que tínhamos visto em áreas rurais de África. O director do escritório da Microsoft na Cidade do México enviava seus filhos para os EUA para fazer exames médicos e verificar se a poluição estava a afectar a sua saúde.
Hoje, a cidade é tremendamente diferente. O ar é limpo como em Los Angeles (que não é grande coisa, mas certamente melhor do que em 1987). Há arranha-céus, novas estradas e pontes modernas. Ainda há favelas e bolsões de pobreza, mas agora, em geral, quando visito a cidade, tenho outra impressão: "Uau, a maioria dos moradores aqui é de classe média. Que milagre."
O quadro global da pobreza foi modificado completamente no decorrer de minha vida. As rendas por pessoa na Turquia e no Chile estão no nível dos Estados Unidos em 1960. A Malásia está quase lá e o Gabão também. E aquela terra de ninguém entre países ricos e pobres foi preenchida pela China, Índia, Brasil e outros. Desde 1960 a renda real por pessoa da China aumentou oito vezes. A da Índia quadruplicou, a do Brasil quase quintuplicou e o Botswana, um país pequeno com uma gestão inteligente dos seus recursos minerais, registrou um aumento de 30 vezes. Há uma categoria de países no meio que mal existia há 50 anos e nela se encontra mais da metade da população mundial.
Portanto, a melhor maneira de se responder ao mito de que os países pobres estão condenados a continuar pobres é destacar um facto: eles não continuam pobres. Muitos - mas certamente não todos - os países que chamávamos de pobres hoje têm economias vibrantes. E a percentagem de pessoas muito pobres reduziu-se por mais da metade desde 1990.
Ainda não chegou a hora de comemorar, pois ainda há mais de mil milhões de pessoas na pobreza extrema. Mas seria justo dizer que o mundo mudou e que os termos "países em desenvolvimento" e "países desenvolvidos" perderam sua pertinência.
Qualquer categoria que junte a China e a República Democrática do Congo confunde mais do que esclarece. Alguns dos chamados países em desenvolvimento avançaram tanto que seria justo dizer que se desenvolveram. Alguns estados falidos não se estão a desenvolver nem um pouco. A maioria dos países fica em algum ponto no meio. Por isso é mais instrutivo pensar em termos de países de baixa, média e alta renda. (Alguns especialistas chegam mesmo a dividir os países de renda média em duas subcategorias: baixa-média e alta-média).
Com isso em mente, voltemos à versão mais específica e perniciosa desse mito: "Certamente os tigres da Ásia estão bem, mas a vida na África nunca melhora nem vai melhorar.
"Primeiramente, não deixe ninguém dizer que África está pior hoje do que há 50 anos. Na realidade, a renda por pessoa aumentou na África ao sul do Saara nesse período - e bastante em alguns países. Houve uma queda acentuada durante a crise da dívida da década de 1980, mas aumentou em dois terços desde 1998, passando de pouco mais de US$ 1.300 para quase US$ 2.200. Hoje, um número crescente de países está a entrar num desenvolvimento forte e sustentável e outros mais seguirão pelo mesmo caminho. Sete das dez economias de maior crescimento nos últimos 5 anos estão na África.
África também teve grande avanço em saúde e educação. Desde 1960, a duração da vida das mulheres ao sul do Saara aumentou de 41 para 57 anos, apesar da epidemia de HIV. Sem HIV seria de 61 anos. A percentagem de crianças matriculadas nas escolas passou de pouco mais de 40% para mais de 75% desde 1970. Menos pessoas passam fome e mais gente tem boa nutrição. Se ter comida suficiente, ir à escola e viver mais são medidas de uma vida boa, então a vida certamente está a melhorar em África. Essas melhoras não são o fim da história; são a base para mais progresso.
É claro que essas médias regionais encobrem grandes diferenças entre países. Na Etiópia, a renda é de apenas US$ 800 por ano por pessoa. No Botsuana é de quase US$ 12.000. Essa enorme diferença também ocorre dentro dos países. A vida numa área urbana importante como Nairóbi não se parece em nada com a vida em uma aldeia rural do Quênia. Deve-se duvidar de quem trata todo o continente como se fosse uma massa indiferenciada de pobreza e doença.
Conclusão: Os países pobres não estão condenados a continuar pobres. Alguns dos chamados países em desenvolvimento na verdade já se desenvolveram. Muitos mais estão a caminho. Os que ainda buscam seu caminho não estão tentam algo sem precedentes. Há bons exemplos a seguir.
Sinto um optimismo suficiente para fazer uma previsão. Até 2035, quase não haverá países pobres no mundo (isto é, de acordo com nossa definição actual de pobreza).
Quase todos os países serão o que hoje chamamos de renda baixa-média ou até mais ricos. Os países aprenderão com seus vizinhos mais produtivos e vão beneficiar de inovações como novas vacinas, melhores sementes e a revolução digital. Suas forças de trabalho, estimuladas pela expansão da educação, atrairão novos investimentos.
Alguns países ficarão para trás devido a guerras, política (Coreia do Norte, salvo se houver mudanças importantes) ou geografia (países sem acesso ao mar no centro de África).
Vai persistir o problema da desigualdade: haverá pobres em cada região. No entanto, a maior parte estará em países auto-suficientes.
Cada país da América do Sul, Ásia e América Central (com a possível exceção do Haiti), e a maioria nas costas da África terão entrado para a categoria dos países de renda média. Mais de 70% dos países terão uma renda por pessoa maior do que a China hoje em dia. Quase 90% terão renda maior do que a Índia actualmente.
Será uma realização notável. Quando nasci, a maioria dos países do mundo era pobre. Nas duas décadas seguintes, os países em pobreza extrema passarão a ser excepção em vez de norma. Milhares de milhões de pessoas terão saído da pobreza extrema. A ideia de que isso ocorrerá durante minha vida é simplesmente surpreendente para mim.
Alguns dirão que ajudar quase todos os países a se desenvolverem até o nível de renda média não vai resolver todos os problemas do mundo e até mesmo agravará alguns. De facto precisaremos desenvolver fontes mais baratas e limpas de energia para evitar que todo esse crescimento agrave o clima e o meio ambiente. Também teremos de resolver os problemas gerados pela prosperidade, como taxas mais elevadas de diabetes. Mas, à medida em que as pessoas se educarem mais, elas contribuirão para resolver tais problemas. Levar a agenda de desenvolvimento à sua quase plenitude será mais importante para melhorar a vida humana do que qualquer outra ação.
MITO 2: A ASSISTÊNCIA EXTERNA É UM GRANDE DESPERDÍCIO
Podem ter lido artigos sobre assistência externa com grandes generalizações baseadas em exemplos menores. Eles tendem a citar casos de desperdício em algum programa e sugerem que a assistência externa é um desperdício. Com muitas histórias desse tipo é fácil ter a impressão de que a assistência não funciona. Não surpreende que um jornal britânico informou no ano passado que mais da metade dos eleitores do Reino Unido querem cortar a assistência externa.
Essas notícias dão um quadro distorcido do que ocorre nos países que recebem assistência. Desde que Melinda e eu iniciamos a fundação há 13 anos, tivemos a sorte de ver o impacto de programas financiados pela fundação e governos doadores. O que vemos no decorrer do tempo é gente a viver mais, a ficar mais saudável e a escapar da pobreza, em parte devido a serviços que a assistência ajudou a desenvolver e distribuir.
Eu me preocupo com o mito de que a assistência não funciona. Isso dá aos líderes políticos a desculpa para tentar cortar a assistência - e isso significaria menos vidas salvas e mais tempo até que os países se tornem auto-suficientes.
Quero responder a algumas críticas que vocês ter lido. Devo reconhecer inicialmente que nenhum programa é perfeito e que há maneiras de aumentar a eficácia da assistência. E a assistência é apenas uma das ferramentas no combate à pobreza e doença: países ricos também precisam de mudanças de políticas, como a abertura de seus mercados e a redução de subsídios agrícolas, e países pobres precisam de gastar mais em saúde e desenvolvimento para o seu próprio povo.
Em termos gerais, a assistência é um investimento fantástico e devemos fazer mais. Ela salva e melhora vidas com muita eficácia, estabelecendo as bases para o tipo de progresso a longo prazo que descrevi no mito 1 (que, por sua vez, ajuda os países a deixarem de depender de assistência). É irónico que a fundação tenha fama de insistir em resultados, enquanto muitos duvidam dos programas de assistência governamental aos quais nos associamos. A fundação faz muito para ajudar tais programas a serem mais eficientes e a medirem seu progresso.
O volume de assistência
Muitos acham que a assistência para o desenvolvimento é uma parcela grande dos orçamentos dos países ricos - o que significa ser possível economizar muito realizando cortes. Quando as pesquisas de opinião perguntam aos americanos que parcela do orçamento é destinada a assistência, a resposta média é 25%. Indagados sobre quanto o governo deveria gastar, a resposta tende a ser 10%. Suponho que o mesmo ocorra no Reino Unido, Alemanha e outras partes.
Eis os números verdadeiros. Na Noruega, o país mais generoso do mundo, é menos de 3%. Nos Estados Unidos é menos de 1%.
Um por cento do orçamento dos EUA é cerca de US$ 30 mil milhões por ano. Desse total, cerca de US$ 11 mil milhões vão para a saúde: vacinas, mosquiteiros, planeamento familiar, remédios para manter vivas as pessoas com HIV e assim por diante. (Os outros US$ 19 mil milhões cobrem actividades como construção de escolas, estradas e sistema de irrigação.)
Não quero dar a impressão de que US$ 11 mil milhões não é muito dinheiro. Mas, em perspectiva, trata-se de cerca de US$ 30 por cada cidadão americano. Imaginem se o formulário de declaração de imposto de rendimento perguntasse: "Podemos usar US$ 30 do imposto que você já está a pagar para proteger 120 crianças contra o sarampo?" Você marcaria sim ou não?
Vejamos o impacto geral do gasto. Em termos gerais, somei todo o dinheiro gasto por doadores em assistência à saúde desde 1980. Em seguida, dividi o número de mortes infantis que foram evitadas no mesmo período. Chega-se a menos de US$ 5.000 por criança salva (e o dado não inclui melhorias na saúde além de salvar crianças). US$ 5.000 pode parecer caro, mas devemos nos lembrar que as agências do governo dos EUA tipicamente avaliam a vida de um americano em vários milhões de dólares.
Lembrem-se também de que crianças saudáveis fazem mais do que apenas sobreviver. Elas vão à escola e acabam a trabalhar. Com tempo tornam os seus países mais auto-suficientes. É por isso que digo que a assistência é tão vantajosa.
O governo dos EUA gasta mais do que o dobro em subsídios agrícolas do que em assistência à saúde. Gasta mais de 60 vezes mais na área militar. Da próxima vez que alguém lhe disser que podemos reduzir o orçamento cortando a assistência, espero que lhe perguntem se isso custará a morte de mais pessoas.
Corrupção
Uma das narrativas mais comuns sobre assistência refere-se à parte que é desperdiçada por corrupção. É verdade que, quando a assistência para a saúde é roubada ou desperdiçada, paga-se o preço em vidas. Precisamos erradicar a fraude e obter mais de cada dólar.
No entanto, também devemos ter em mente a dimensão relativa do problema. Corrupção em pequena escala, como o funcionário publico que cobra gastos de viagem fictícios, é uma ineficiência que equivale a um imposto sobre a assistência. Embora devamos tentar reduzir isso, não há como eliminar, como não podemos eliminar o desperdício em todos os programas de governo e mesmo em empresas particulares. Suponhamos que a corrupção em pequena escala corresponda a um imposto de 2% sobre o custo de se salvar uma vida. Devemos tentar reduzir isso, mas, se não pudermos, deixaríamos de tentar salvar vidas?
Podem ter ouvido falar de um escândalo no Camboja ano passado envolvendo um programa de mosquiteiros sob gestão do Fundo Global de Combate à Sida, Tuberculose e Malária. Funcionários cambojanos foram apanhados a receber subornos de centenas de milhares de dólares de fornecedores. Houve manchetes do tipo "Como desperdiçar dinheiro de assistência externa". Fui citado num artigo como uma das pessoas cujo dinheiro estava a ser desperdiçado.
Agradeço a preocupação e é bom ver que a imprensa pede contas de instituições. Mas a imprensa não foi quem descobriu esse esquema. Foi o Fundo Global ao fazer uma auditoria interna. Ao descobrir e corrigir o problema, o Fundo Global fez exactamente o que devia fazer. Seria estranho exigir que eliminem a corrupção e depois atacá-los por terem descoberto a pequena percentagem de abuso.
Há nisso dois pesos e duas medidas. Ouvimos gente a exigir que o governo feche um programa de assistência se for descoberto um dólar de corrupção. Por outro lado, quatro dos últimos sete governadores do estado americano do Illinois foram presos por corrupção e, que eu saiba, ninguém exigiu o encerramento das escolas ou estradas do Illinois.
A Melinda e eu não apoiaríamos o Fundo Global ou qualquer outro programa se o dinheiro fosse mal empregue em grande escala. As mortes por malária desceram 80% no Camboja desde que o Fundo Global iniciou as suas actividades no país em 2003. As histórias horríveis - segundo as quais a assistência serve apenas para ajudar o ditador a construir um novo palácio - vêm da época em que muita assistência visava apenas ganhar aliados na Guerra Fria em vez de melhorar vidas humanas. Desde aquela época, todos os interessados aprimoraram muito a medição dos resultados. Principalmente em saúde e agricultura, podemos validar os resultados e saber o que obtemos por cada dólar que gastamos.
Além disso, a tecnologia ajudará na luta contra a corrupção. A Internet está a ajudar os cidadãos a saberem o que seu governo deveria estar a oferecer - como o volume de recursos que o hospital da sua zona deve receber - e assim podem cobrar dos funcionários. À medida que aumenta o conhecimento do público, reduz-se a corrupção e mais dinheiro segue para o lugar certo.
Dependência de assistência
Outro argumento dos críticos é de que a assistência restringe o desenvolvimento económico normal, mantendo os países sob dependência da generosidade de pessoas de fora.
Esse argumento contém vários erros. Primeiramente, junta tipos diferentes de assistência. Não diferencia a assistência enviada diretamente a governos e recursos utilizados para pesquisas sobre novas ferramentas, como vacinas e sementes. O que os EUA gastaram na década de 1960 para desenvolver safras mais produtivas tornaram os países asiáticos e latino-americanos menos (e não mais) dependentes de nós. O que gastamos hoje numa Revolução Verde para África ajuda os países a produzirem mais alimentos, reduzindo também sua dependência. A assistência é essencial para esses "bens públicos globais", que são essenciais para a saúde e o crescimento econômico. Por isso nossa fundação aplica mais de um terço de nossos financiamentos no desenvolvimento de novas ferramentas.
Segundo, o argumento de que "assistência cria dependência" ignora todos os países que deixaram de receber assistência e se concentra apenas nos casos mais difíceis. Eis uma breve lista de antigos grandes beneficiários que cresceram tanto que hoje praticamente não recebem qualquer assistência: Botswana, Marrocos, Brasil, México, Chile, Costa Rica, Peru, Tailândia, Maurícias, Singapura e Malásia. A Coreia do Sul recebeu enormes volumes de assistência após a Guerra da Coreia e agora doa mais do que recebe. A China também é um doador líquido e financia muita actividade científica para ajudar os países em desenvolvimento. A Índia recebe 0,09% de seu PIB em assistência; em 1991 recebia 1%.
Mesmo na África a sul do Saara, a parcela da economia que provém da assistência é um terço menor do que há 20 anos, embora o total da assistência à região tenha dobrado. Alguns países, como a Etiópia, dependem de assistência e todos - principalmente os próprios etíopes - querem que a situação mude. Desconheço qualquer argumento convincente de que a Etiópia estaria melhor hoje em dia com muito menos assistência.
Quem critica tem razão em dizer que não há prova definitiva de que a assistência é um motor do desenvolvimento económico. Mas o mesmo pode ser dito sobre qualquer outro factor da economia. É muito difícil saber exactamente que investimentos estimularão o crescimento económico, sobretudo a curto prazo. No entanto, sabemos que a assistência melhora a saúde, agricultura e infraestrutura - o que tem uma forte correlação com o crescimento a longo prazo. Assistência em saúde salva vidas e permite o desenvolvimento mental e físico das crianças. Pesquisas mostram que elas serão adultos mais saudáveis e mais produtivos no trabalho. Ao se colocar contra esse tipo de assistência, é preciso argumentar que salvar vidas não afecta o crescimento económico ou que não interessa salvar vidas.
O poder da assistência para salvar vidas é tão óbvio que mesmo os críticos da assistência o reconhecem. No meio de seu livro O Fardo do Homem Branco, William Easterly (um dos mais conhecidos críticos da assistência) lista vários sucessos globais de saúde que foram financiados mediante assistência. Eis alguns destaques:
"Uma campanha de vacinação no sul da África praticamente eliminou o sarampo como doença fatal da infância."
"Um esforço internacional erradicou a varíola no mundo."
"Um programa de controlo de tuberculose na China reduziu o número de casos em 40% entre 1990 e 2000."
"Um programa regional para eliminar a poliomielite na América Latina após 1985 eliminou-a como ameaça à saúde pública nas Américas."
Último ponto que vale a pena citar. Hoje há apenas três países que nunca estiveram livre da poliomielite: Afeganistão, Paquistão e Nigéria. No ano passado, a comunidade global da saúde adoptou um plano abrangente para eliminar aquela doença no mundo até 2018, e dezenas de doadores se ofereceram para financiá-lo. Com a sua eliminação, o mundo economizará cerca de US$ 2 mil milhões por ano, que hoje são empregues no combate à doença.
Conclusão: A assistência à saúde é um investimento fenomenal. Ao examinar a redução do número de mortes infantis nos últimos trinta anos e quantas pessoas agora têm vidas mais longas e saudáveis, sinto um grande otimismo quanto ao futuro. A fundação trabalhou com um grupo de destacados economistas e especialistas em saúde global a examinar as possibilidades futuras. No mês passado eles escreveram na revista médica The Lancet que, com os investimentos apropriados e mudanças em políticas, até 2035 cada país terá taxas de mortalidade infantil tão baixas quanto as dos Estados Unidos ou Reino Unido em 1980.6
Pode-se ver como a convergência será espectacular:
Coloquemos esse sucesso em perspectiva histórica. Um bebê nascido em 1960 tinha uma chance de 18% de morrer antes dos cinco anos. Para uma criança nascida hoje, a probabilidade é inferior a 5%. Em 2035, a probabilidade será de 1,6%. Não vejo nenhuma melhoria num prazo de 75 anos que possa se comparar a isso.
Para tanto será necessário que o mundo se una em torno dessa meta, inclusive cientistas e profissionais de saúde, bem como países doadores e beneficiários. A inclusão dessa visão na próxima revisão dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio da ONU ajudará a todos os que actuam em prol desse marco importante.
Muitos países de baixa e média renda vão desenvolver-se o suficiente para pagarem pela convergência. Outros ainda precisarão da generosidade de doadores, inclusive de investimentos em pesquisa e desenvolvimento em saúde. Os governos também deverão adoptar políticas apropriadas. Por exemplo, os países de renda média devem considerar impostos sobre o tabaco e cortes nos subsídios a combustíveis fósseis, liberando recursos para a saúde.
Espero principalmente que deixemos de discutir se a assistência funciona e dediquemos mais tempo a como aprimorá-la ainda mais. Isso é essencial à medida que passamos das pesquisas sobre bens públicos globais à montante para as iniciativas de implementação dessas inovações a jusante. Os países beneficiários são responsáveis por identificar os melhores locais para a construção de clínicas e treinar o pessoal? E os doadores estão a ajudar a capacitar as equipes locais para eliminar a necessidade de peritos ocidentais? Será que os países com melhor desempenho estão a transmitir as lições aprendidas para que outros países façam o mesmo? Essa é uma importante área de pesquisa na Fundação.
Há muito tempo acho que as desigualdades ena saúde são uma das maiores iniquidades do mundo - é injusto e inaceitável que milhões de crianças morram cada ano de doenças que podem ser prevenidas ou tratadas. Não creio que o destino das crianças deva depender do que Warren Buffet chama de "lotaria do nascimento". Se atingirmos a meta de convergência, essa lotaria será terminada de uma vez por todas.
MITO 3: SALVAR VIDAS RESULTA EM SUPERPOPULAÇÃO.
Vemos com frequência comentários desse tipo no blog, na página do Facebook e nas mensagens do Twitter da Fundação Gates. Percebe-se que as pessoas estejam preocupadas quanto à capacidade do planeta para continuar a sustentar a humanidade, principalmente em uma época de mudança climática. No entanto, esse tipo de pensamento criou muitos problemas para o mundo. As ansiedades quanto ao tamanho da população mundial têm uma tendência perigosa de afastar as preocupações com os seres humanos que formam essa população.
Pelo menos desde Thomas Malthus, que publicou seu "Ensaio sobre o Princípio da População" em 1798, as pessoas têm-se preocupado com cenários de fim de mundo em que a quantidade de alimentos não consegue acompanhar o aumento da população. Mais recentemente, no período da Guerra Fria, peritos dos EUA em política externa teorizavam que a fome tornaria a população de países pobres suscetíveis ao comunismo. O controlo da população dos países pobres, o chamado "Terceiro Mundo", tornou-se política oficial no chamado "Primeiro Mundo". Nos piores casos, isso significava tentar forçar as mulheres a não engravidarem. Pouco a pouco, a comunidade global de planeamento familiar afastou-se desse enfoque restrito em limitar a reprodução, passando a pensar em como ajudar as mulheres a controlar suas próprias vidas. Foi uma boa mudança. Tornamos o futuro sustentável quando investimos nos pobres e não quando insistimos em seu sofrimento.
O facto é que a abordagem de não intervenção no desenvolvimento - deixando as crianças morrerem para que não passem fome mais tarde - realmente não funciona, graças a Deus. Pode não ser muito intuitivo, mas os países com mais mortes são os que têm as populações de maior crescimento do mundo. A explicação é que as mulheres nesses países também tendem a ter mais partos. Os estudiosos debatem os motivos precisos desse fenómeno, mas a correlação entre mortalidade infantil e taxas de nascimento é forte.
Vejamos o Afeganistão, onde a mortalidade infantil - o número de crianças que morrem antes dos cindo anos de idade - é muito alta. As mulheres afegãs têm, em média, 6,2 filhos. Devido a isso, embora mais de 10% das crianças afegãs não sobrevivam, a previsão é de que a população do país aumentará dos 30 milhões de hoje para 55 milhões até 2050. Obviamente, taxas elevadas de mortalidade não impedem o crescimento da população (sem mencionar o facto de que ninguém considera o Afeganistão um modelo para um futuro próspero).
Quando crianças sobrevivem em maiores números, os pais decidem ter famílias menores. Vejamos o caso da Tailândia. A mortalidade infantil começou a cair por volta de 1960. Então, em cerca de 1970, após investimento do governo num programa vigoroso de planeamento familiar, as taxas de natalidade começaram a baixar. No decorrer de apenas duas décadas, as mulheres tailandesas passaram de uma média de seis filhos para uma média de dois. Hoje a mortalidade infantil na Tailândia é quase tão baixa quanto nos EUA e as mulheres tailandesas têm, em média, 1,6 filhos.
Se examinarem o caso do Brasil, verão a mesma coisa: à medida que descia a taxa de mortalidade infantil, também baixava a taxa de natalidade. Também tenho o gráfico da taxa de crescimento da população para mostrar que a população do país cresceu mais lentamente à medida em que mais crianças sobreviviam. Se examinarmos gráficos da maioria dos países sul-americanos, as linhas serão semelhantes.
O padrão de declínio da mortalidade juntamente com a redução das taxas de natalidade aplica-se à ampla maioria dos países. Os demógrafos deram a esse fenómeno o nome de "transição demográfica" e realizaram muitos estudos académicos sobre isso. Os franceses foram os primeiros a iniciar essa transição, no final do século XVII. Em França, o tamanho médio da família baixa a cada década há 150 anos seguidos. Na Alemanha, as mulheres passaram a ter menos filhos na década de 1880 e, em apenas 50 anos, o tamanho das famílias voltou a estabilizar. No Sudeste da Ásia e na América Latina, a média de fertilidade baixou, numa única geração, de seis ou sete filhos para dois ou três por mulher, graças, em grande medida, aos contraceptivos modernos disponibilizados na década de 1960.
Como muitos países - com excepções na África a sul do Saara e no Sul da Ásia - já passaram por essa transição, a população global está a crescer mais lentamente a cada ano. Como disse Hans Rosling, professor do Instituto Karolinska da Suécia e um dos meus nerds de dados favoritos, "a quantidade de crianças no mundo hoje é provavelmente a maior do que jamais teremos no futuro! Estamos a entrar na era do Pico de Crianças!".
Com base em toda a evidência, minha perspectiva quanto a um futuro sustentável é muito mais optimista do que a dos malthusianos. O planeta não prospera quando se permite que os mais doentes morram, mas, sim, quando eles conseguem melhorar suas vidas. Os seres humanos não são máquinas. Não nos reproduzimos sem pensar. Tomamos decisões com base nas circunstâncias que enfrentamos.
Eis um exemplo: as mães em Moçambique têm uma possibilidade 80 vezes maior de perder um filho do que as mães em Portugal, o país que governou Moçambique até 1975. Essa estatística agregada chocante representa uma realidade horrível que as mulheres moçambicanas precisam confrontar; elas nunca têm certeza se seus filhos sobreviverão. Conversei com mães que deram à luz a muitas crianças, mas perderam a maioria. Elas me disseram que todo o seu luto valeu a pena, para acabar com o número de filhos sobreviventes que desejavam.
Quando as crianças são bem nutridas, plenamente vacinadas e recebem tratamento para doenças comuns como diarreia, malária e pneumonia, o futuro fica muito mais previsível. Os pais começam a tomar decisões com base em expectativas razoáveis de que seus filhos sobreviverão.
Taxas de mortalidade são apenas um dos muitos factores que afectam as taxas de natalidade. Por exemplo, o empoderamento das mulheres - com base em idade ao se casar e nível de formação - é um factor da maior importância. Meninas que casam quando ainda são adolescentes tendem a começar a engravidar mais cedo e, portanto, terão mais filhos. Elas normalmente deixam a escola, o que limita as suas oportunidades de aprender mais sobre os seus corpos, sexo e reprodução e também de adquirir outros tipos de conhecimento que as ajudariam a melhorar de vida. Além disso, as noivas adolescentes em geral têm dificuldades nos seus casamentos em falar sobre o seu desejo de planear as suas famílias. Acabei de viajar à Etiópia, onde conversei longamente com jovens noivas, a maioria delas tendo-se casado aos 11 anos de idade. Todas falaram sobre o desejo de um futuro diferente para seus filhos, mas as informações de que dispunham sobre contraceptivos eram incompletas na melhor das hipóteses. Sabiam também que, quando foram obrigadas a deixar a escola, fechou-se o melhor caminho para a oportunidade.
De facto, quando as meninas adiam o casamento e continuam a estudar, tudo muda. Um estudo recente em 30 países em desenvolvimento constatou que as mulheres sem escolaridade tinham, em média, três filhos a mais do que mulheres que cursaram o ensino médio. Quando as mulheres estão empoderadas com conhecimentos e habilidades profissionais, elas começam a mudar de opinião quanto ao tipo de futuro que desejam.
Recentemente passei uma tarde com uma mulher chamada Sadi Seyni, que mal consegue ganhar a vida para cinco filhos numa fazenda árida da região desértica do Níger. Ela desconhecia que existiam contraceptivos ao se casar, ainda adolescente. Agora ela sabe e está a deixar espaço de vários anos entre cada gravidez para proteger a sua saúde e a saúde dos seus recém-nascidos. Visitei o lugar onde ela aprendeu sobre planeamento familiar: o poço da aldeia, onde as mulheres vão para conversar. E conversar. E conversar. Enquanto contávamos histórias, uma jovem noiva veio buscar água. Com a ajuda de um tradutor, a jovem disse-me que as suas gestações eram a "vontade de Deus" e, portanto, estavam fora de seu controlo. Sadi sugeriu que, se essa menina continuasse a ir ao poço e ouvir, ela iria mudar sua visão com o tempo. Mesmo a educação informal, que ocorre quando algum conhecimento se espalha entre pessoas amigas, transforma a maneira de se pensar sobre o que é possível.
É importante destacar que o desejo de planear é apenas uma parte da equação; as mulheres precisam de acesso a contraceptivos para continuarem o seu plano. Sadi mora muito perto de uma clínica de saúde que, no entanto, não dispõe das injecções que ela prefere. Por isso, ela precisar caminhar 15 quilómetros de três em três meses para obter as suas injecções. Sadi está furiosa e com toda razão com a grande dificuldade que tem em cuidar de si própria e de sua família. Muitas mulheres como Sadi não têm informações sobre o planeamento das suas gravidezes de maneira saudável e não têm acesso a contraceptivos. Mais de 200 milhões de mulheres dizem que não querem engravidar mas não estão a usar contraceptivos. Rouba-se dessas mulheres as oportunidades de decidir sobre como criar as suas famílias. Por não poderem determinar quantos filhos terão ou quando tê-los, também enfrentam dificuldades maiores para alimentá-los, pagar por cuidados médicos ou manda-los à escola. É um círculo vicioso de pobreza.
Por outro lado, o círculo virtuoso que começa com saúde básica e empoderamento resulta não apenas numa vida melhor para as mulheres e suas famílias, mas também com crescimento económico significativo para o país. Na verdade, um dos motivos do chamado milagre económico asiático da década de 1980 foi a queda tão rápida da fertilidade em todo o Sudeste da Ásia. Os peritos dão a esse fenómeno o nome de dividendo demográfico. À medida que menos crianças morrem e nascem, a estrutura etária da população muda gradualmente. A certa altura ocorre uma acumulação de pessoas a trabalhar na sua idade mais produtiva. Isso significa que há mais gente na força de trabalho a gerar crescimento económico. Ao mesmo tempo, tendo em vista que o número de crianças pequenas é relativamente menor, o governo e os pais podem investir mais na educação e saúde de cada criança, o que pode resultar em mais crescimento económico a longo prazo.
Tais mudanças não ocorrem por si só. É preciso que os governos estabeleçam políticas para ajudar os países a aproveitar a oportunidade criada por transições demográficas. Com a ajuda de doadores, os governos devem investir em saúde e educação, dar prioridade ao planeamento familiar, criar empregos e expandir o sistema financeiro. Mas, se os líderes definirem as prioridades estratégicas certas, a perspectiva de um ciclo virtuoso de desenvolvimento, que transforme sociedades inteiras, será muito real.
Círculo virtuoso não é apenas um jargão de desenvolvimento. É um fenómeno que milhões de pessoas pobres entendem muito bem e que orienta suas decisões do dia-a-dia. Tenho o privilégio de conhecer mulheres e homens em países pobres que praticam pequenos gestos de amor e optimismo - como abster-se de algo para poder pagar a escola de seus filhos - que impulsionam o círculo virtuoso. O futuro que esperam e pelo qual trabalham arduamente - esse é o futuro em que acredito.
Nessa versão do futuro, os países actualmente pobres serão mais saudáveis, mais ricos, com maior igualdade - e a crescer de maneira sustentável. A visão alternativa resumida pelo mito malthusiano - um mundo em que a sustentabilidade depende da miséria permanente de alguns - é uma leitura equivocada das evidências, além de ser uma falha de imaginação.
Salvar vidas não leva à superpopulação. Na verdade, o que ocorre é exatamente o contrário. Criar sociedades em que as pessoas gozem de saúde básica, alguma prosperidade, igualdade fundamental e acesso a contraceptivos é a única maneira de garantir um mundo sustentável. Construiremos um futuro melhor dando às pessoas liberdade e poder para construir um futuro melhor para si próprias e para suas famílias.
O FUTURO
Para quem lê notícias todos os dias, é fácil ter a impressão de que o mundo está a piorar. Não há nada de errado em enfocar notícias ruins quando as colocamos em contexto. Para Melinda e mim, é repugnante o facto de que mais de seis milhões de crianças morreram no ano passado. Mas ficamos motivados pelo fato de que esse número é o menor jamais registrado. Queremos assegurar que continue a baixar.
Esperamos que ajudem a desmentir esses mitos. Ajudem os vossos amigos a colocar as más notícias em contexto. Digam aos líderes políticos que vocês se interessam em salvar vidas e apoiam a assistência externa. Se quiserem fazer alguma doação, saibam que as organizações que actuam em saúde e desenvolvimento oferecem um retorno fenomenal para seu dinheiro. Quando estiverem num fórum online e alguém alegar que salvar crianças causa superpopulação, expliquem os factos. Vocês podem ajudar a criar uma nova percepção global de que cada vida tem valor igual.
Todos temos a oportunidade de criar um mundo em que a pobreza extrema seja a excepção, e não a regra, e onde todas as crianças tenham a mesma possibilidade de prosperar, não importa onde tenham nascido. Para os que acreditamos no valor de cada vida humana, não há nenhum outro trabalho mais inspirador no mundo hoje".
Expansão