A Europa é um jardim. o resto é selva
O olhar imperial europeu, herdeiro do pensamento hegemónico sobre o outro, continua, nos dias que correm, a caracterizar a natureza da cultura Ocidental. Revive-se o período idílico, abalado pelo conflito na Europa.
E, por conta disso, somos ameaçados por todos os lados, sem saber qual das duas ameaças é mais brutal: de um lado a decadência do Ocidente e, do outro, a ascensão do Oriente com a China no topo.
No meio de tudo isso, uma visão eurocentrista do mundo insiste em perpetuar-se, baseada em auto-imagens e estereotipos com olhares imperiais sobre o universo, com uma teia de variedades multidimensional e uma lógica de complexa existência, de dores e pezares, herdeira de tais preconceitos e tais teorias.
O espanhol Josep Borrell, Alto Comissário da União Europeia (UE) para a Política Externa e a Segurança, encarna ao mais alto nível, esta elite ao desprezar-nos com afirmações chocantes: "a Europa é um jardim. (...) a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade já construiu. O resto do mundo é uma SELVA...".
Para este líder europeu, a Europa é a melhor criação divi[1]na na terra. O resto está condenado a permanecer, irremediavelmente, unívoca e imutável. Esta tese de supremacia do europeu e da Europa, em relação aos outros, responde exactamente àquele fenótipo desenhado por Charles Linné a que a historiadora Leila Hernandez se refere: "Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulador; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas. Governado por leis" (Hernandez, 2005:19).
Os outros são governados pela ordem natural da existência humana, incapazes de mudar. Para Borrell, os outros, os da SELVA não têm condições de ultrapassar os limites de selvajaria e de buscar um novo estado de existência, tal como sustentou também Hegel (1770-1831). Para este filósofo alemão, "a Europa é a parte do mundo do espírito, do espírito unido em si mesmo, e que tem se dedicado à realização e conexão infinita da cultura".
Essas reiterações de ódio não surpreendem. Ao longo de toda a vida, escutamos os mesmos insultos, o mesmo ódio. O discurso é, no fundo, uma estratégia do agressor, com traços autoritários, que se fundamenta no determinismo geográfico e reúne todas as condições indispensáveis ao conflito. Esta percepção errada e intencional, construída e pensada ao longo da história, com as quais os oprimidos se relacionaram profundamente, não ilumina a possibilidade de mudanças conciliatórias nas relações internacionais, nem sustentam um vínculo colectivo à revolução de ideias e de acções.
Diante das consequências da guerra, visível nos media, nota-se o nervosismo que invade a Europa, os cidadãos europeus e os seus governantes. Os media tornaram-se monotemáticos e, com tanta barbárie que os toca, os afectos não são o essencial. Enfim, os interesses hegemónicos persistem e provocam traumas. E têm incidência sobre os indivíduos.
Talvez seja aqui onde reside a face mais triste e difícil do trauma: esquecer a experiência do passado. Porque ela pode ser esquecida, mas não deixa de repetir-se. Josep Borrell pode estar a ser vítima de uma espécie de retardamento da memória diante de uma experiência psicológica muito violenta. Contudo, tentou corrigir o erro, mas o estrago já estava feito.