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"Falar-se-á sempre de Njinga pelo impacto da sua intervenção"

ROSA CRUZ E SILVA

A docente universitária dá voz e rosto ao projecto "African Queens" que está a ser emitido na plataforma Netflix. O contributo é contar o desempenho da Rainha Njinga na história de Angola e da região. A ex- -ministra da Cultura apela a um maior interesse pela investigação cientifica.

É uma personagem entre as escolhidas para dar voz à história da Rainha Njinga, na série African Queens. Qual é a sensação de fazer parte deste projecto?

É uma sensação de regozijo, de satisfação. Mas este projecto resulta do trabalho que temos feito aqui, no País, e no exterior e que, de algum modo, foi reconhecido, o trabalho da Rosa Cruz e Silva.

Como chegou ao projecto?

Fui contactada por professores que trabalharam e continuam comigo. São pessoas que conheci no primeiro congresso de história de África, que assisti no Canadá, em 1992. Lá conheci uma boa parte de historiadores africanistas, em geral, mas também aqueles que trabalham para Angola, como Joseph Miller, John Thornton, Gil Diaz, Pierre Marie, José Curto, que foi o organizador do congresso.

Onde é que decorreram as filmagens?

Depois disto fui incluída no grupo para as filmagens. Fui à África do Sul, a Cape Town, e fiz a entrevista, que foi muito longa. A série passa três ou quatro momentos da entrevista, mas ela foi um dia inteiro: desde as 9h00 até às 18h00 do mesmo dia. Fizemos uma interrupção de meia hora para comer, depois continuámos.

A proposta de fazer parte do projecto é recente?

Quando a produtora decidiu fazer esta série "African Queens" fui contactada pelo professor John Thornton e começámos a trabalhar online. Fizemos várias reuniões, em que eles perguntaram muito sobre a Njinga, sobre as questões polémicas, questões em que subsistem as interrogações. E foi fácil porque já tínhamos feito várias coisas sobre a rainha Njinga. A primeira coisa sobre Njinga foi um artigo que depois o Museu Nacional de Antropologia publicou, "Njinga Mbandi e o poder", um livrinho pequeno. Depois trabalhámos para o busto e a estátua.

O trabalho com a estátua foi mais intenso?

Sim. O trabalho com a estátua foi mais profundo, desde a recolha das fontes, imagens da época. E a estátua. Ao contrário do País, que não liga nenhuma, os africanistas e historiadores reviram- -se. Basta olhar para as obras, nas quais nos inspirámos para perceber que aquilo é uma reconstituição de imagem, onde sobressaem os símbolos da época, desde a forma de vestir, os tecidos, o pano. Enfim, os símbolos do poder, porque aqui a Njinga é muito ignorada, preferimos a coroa. Mas para dizer que foi este o percurso que me levou ao African Queens.

Por que afirma que não se dá o devido valor à estátua?

Eu explico. Esta estátua foi inaugurada em 2001 ou 2002, já não me lembro bem, e sempre esteve ali, no largo do Kinaxixi. Nos livros que se seguiram, esta imagem não aparece, continua a imagem ocidental. Esta imagem ocidental é também uma reconstituição, mas baseada na cultura ocidental. Alguns elementos etnográficos que se vêem ali, como os símbolos e desenhos que aparecem na roupa, mas aquela Njinga é mais ao gosto ocidental.

Este é um processo que teve início quando esteve na direcção do Arquivo Histórico?

Este processo começou em 1993 ou 94, foi quando nós, os angolanos, trabalhámos com o escultor Rui de Matos. Foi ele quem fez o primeiro busto que estava em frente da biblioteca Njinga Mbandi. Foi feito o trabalho de recolha de informação e de reconstituição com o dr. Virgílio Coelho, o dr. Xavier Yambu, são estas duas pessoas de que me lembro. A estátua era um processo mais complexo, porque era o corpo inteiro, e até os escultores entenderem o que queríamos, baseado na informação que tinha, foi um processo longo. Tivemos de ir até à Coreia para corrigir algumas coisas, porque os coreanos achavam que a Njinga Mbandi andava de botas.

Qual é a importância desta série, para Angola e África, no geral?

Njinga é eterna e falar-se-á sempre dessa mulher, pelo impacto da sua intervenção. Não só na diáspora Africana, que tem alguma informação sobre o papel que ela desempenhou, essa diáspora quer, e muito, incorporar no seu sistema de valores, no seu conjunto e legado de memórias, a figura da Rainha Njinga. Há todo um repositório que temos da cultura ocidental que nos faz apagar o registo da nossa própria identidade africana.

E participou no estudo sobre a rainha Njinga Mbandi e a literatura angolana, de Inocência da Mata. Como foi fazer esta ligação?

Sim, por causa dos romances, da literatura que vai tendo Njinga como ponto de inspiração. A pedido da autora, que é uma pesquisadora de literatura, Njinga está na história, na literatura. Participei com um artigo sobre memórias.

Também promoveu uma exposição em torno da Rainha Njinga?

Em 2013, já estava no cargo de ministra da Cultura, acompanhei o projecto do Arquivo Nacional, para divulgação das figuras históricas e em relação à Njinga fizemos uma grande exposição itinerante, esteve patente no Museu de História Natural durante três meses, em Luanda. Mas, lamentavelmente, a exposição percorreu o Cuanza Norte, Malanje, Huíla e Namibe. Eu sai e acabou a itinerância de Njinga Mbandi.

Qual era o objectivo?

Ao longo do processo de elevação de Mbanza Congo a património cultural, tivemos uma equipa no Vaticano e trouxemos documentos originais de correspondência que Njinga manteve com o Vaticano e Portugal, correspondência de Njinga com os governadores. Para o reino do Congo temos documentação que é numerosa. A do Ndongo não é tão numerosa, mas existe. E os historiadores nunca tinham dado visibilidade a esta documentação. A exposição serviu também para que a trajectória de Njinga fosse vista, não apenas na narrativa dos seus interlocutores que trouxeram informação, mas do conteúdo escrito por ela ou ditado por ela aos seus secretários. E percebe-se que há um discurso diferente daquele que os missionários teriam feito.