A neutralidade como princípio fundamental do IVA
Sem neutralidade teríamos efeito em cascata e não haveria incentivo para os sujeitos passivos serem agentes de mudança - eu só policio o meu fornecedor porque quero deduzir o IVA que está nas suas facturas.
A laranja e o limão são ambos citrinos, mas um é mais doce do que o outro. Se descascarmos um limão e o revestirmos com a casca de uma laranja, a aparência irá iludir os incautos, mas o conteúdo não deixará de ser amargo. Um IVA que não é neutro é apenas um imposto do consumo disfarçado, um limão com casca de laranja.
A neutralidade deve reger qualquer Imposto sobre o Valor Acrescentado digno desse nome, da Austrália ao Zimbabwe, tal como nos indica a OCDE nas suas guidelines para o imposto.
Quando o IVA entrou em vigor, em 2019, ouvimos diversos conferencistas, lemos articulistas e académicos a invocar que o imposto deveria ser neutro, ou ser o mais neutro possível, visto haver sempre discriminação via taxas diferentes e isenções (recordemos as sábias palavras de Ben Terra, quando diz que em IVA quando se está isento é-se tributado, quando se é tributado está-se isento - lá se vai a neutralidade!).
Ao consultar o portal da AGT, podemos ler na secção de perguntas frequentes sobre o IVA que as grandes vantagens do imposto são: (i) impedir o efeito cascata que se verificava com o imposto do consumo; (ii) reduzir a fraude e evasão fiscal, contribuindo para formalizar a economia; (iii) alargar a base tributária, com consequente aumento das receitas fiscais; e finalmente (iv) permite "maior transparência e neutralidade fiscal, permitindo assim a dedução dos impostos suportados e consequentes reembolsos nos casos de créditos fiscais, originando maior justiça fiscal". Mais do que um princípio fundador, a neutralidade é apresentada como uma vantagem do imposto, sendo de resto aquela que sustenta as outras vantagens listadas pela AGT. Sem neutralidade teríamos efeito em cascata e não haveria incentivo para os sujeitos passivos serem agentes de mudança - eu só policio o meu fornecedor porque quero deduzir o IVA que está nas suas facturas.
No entanto, se lermos a Lei n.º 7/2019, de 24 de Abril, que aprova o Código do IVA, constatamos que não faz qualquer referência directa à neutralidade. A verdade é que não precisa de fazer, já que toda a construção normativa assenta nesse princípio.
Em que consiste exatamente o princípio da neutralidade? Em que é que se traduz, como se garante, e o que pode pô-lo em causa?
Em suma, podemos dizer que a neutralidade se traduz na desoneração do imposto e na igualdade de tratamento das operações realizadas pelos sujeitos passivos. Verifica-se, portanto, a jusante, garantindo que uma empresa que vende citrinos não deve alterar o seu sistema produtivo devido ao IVA, e que um consumidor não deve escolher entre comprar citrinos da empresa A em detrimento da empresa B devido ao IVA. Mas verifica-se particularmente a montante, permitindo através da dedução que o IVA pago ou a pagar pelos empresários nas suas aquisições não será um custo na sua esfera, mas sim na esfera do consumidor final. O imposto só é neutro para o sujeito passivo quando o direito à dedução é garantido na sua plenitude. Existem excepções? Claro que sim. É o caso do IVA incorrido em alojamento e alimentação, que é tipicamente custo na esfera dos empresários. Mas são excepções que confirmam a regra, inequivocamente legisladas e justificáveis à partida perante as previsíveis dificuldades de fiscalização da real afectação de tais gastos. A chave para um IVA funcional, neutro e justo, passa também por garantir que o direito à dedução é efectivo para quem está numa situação de crédito (em Angola, tipicamente será quem exporta ou tem por clientes entidades que cativam). Essa garantia verifica- -se através de um processo de reembolso célere e justo.
Se os sujeitos passivos virem coartado o seu direito à dedução devido a formalidades excessivamente difíceis de cumprir, a neutralidade do imposto é irremediavelmente ferida. Por exemplo, é razoável que se exija a um empresário que valide os requisitos das facturas dos seus fornecedores, mas já não o é obrigar que verifique o SAF-T dos fornecedores sob pena de ver o pedido de reembolso automaticamente indeferido. Em tal cenário, tenderemos a descobrir um limão à medida que formos tirando a casca da laranja.
Leia o artigo integral na edição 785 do Expansão, de sexta-feira, dia 19 de Julho de 2024, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)