Reforma profunda nos sistemas internacionais de comércio e finanças (II)
A aplicação de tarifas às importações de outros países, pelo governo norte-americano, visa aumentar os custos das importações, obrigando a que, para ter acesso ao mercado dos EUA, as empresas que transacionam com a economia americana tenham que deslocar as suas unidades fabris para território americano (onshoring), onde as tarifas são nulas.
Na edição da semana passada, abordei a reforma profunda nos sistemas internacionais de comércio e finanças, tendo me concentrado no sistema comercial. Neste artigo, trato do sistema financeiro internacional. Reitero que não viso exprimir a minha concordância nem discordância ou vaticinar se serão bem-sucedidas estas reformas, mas partilhar o entendimento que tenho sobre o que as fundamenta, baseado no que retiro dos eventos em que participo e documentos que consulto.
No artigo da edição passada, vimos que a nova política dos Estados Unidos da América (EUA) procura a alteração do sistema de comércio internacional com vista a dominar as cadeias de produção e abastecimento, sobretudo as relacionadas com a defesa e segurança nacional. Nesse processo, vai promover o onshoring de actividade industrial que, com o processo de globalização, foi deslocado para outros países. Para além de reduzir a dependência de importações por via de maior produção interna, as autoridades norte-americanas querem exportar essa produção. E aqui entra o papel do dólar dos Estados Unidos. Para além de dominar as cadeias de produção e abastecimento, os EUA não pretendem um dólar tão forte.
No entender do governo americano, a persistente sobrevalorização do dólar norte-americano causa um desequilíbrio económico, distorce os fluxos comerciais e reduz a competitividade da indústria transformadora americana. Mais concretamente, reduz a competitividade das exportações americanas, inflaciona o custo das importações, causando défices comerciais constantes(1). Para melhor entender esta posição, é necessário o leitor entender o papel que tem o dólar dos Estados Unidos no sistema financeiro internacional.
Para além de desempenhar as funções de meio de pagamento, reserva de valor e unidade de conta na economia norte-americana (e outras onde tem curso legal), o dólar dos Estados Unidos é a principal moeda de reserva (de valor) mundial, quer na forma de cash como de títulos do governo dos EUA. De acordo com o FMI, o dólar dos Estados Unidos representa 57.8% das reservas internacionais do conjunto de países (142) que reporta informação a esta instituição(2).
Os países possuem dólares dos Estados Unidos não apenas como activo de poupança mas também de meio de pagamento entre si. Por exemplo, quando a África do Sul exporta bens alimentares para Angola, recebe em dólares dos Estados Unidos. O mesmo se aplica ao comércio bilateral entre outros tantos países. Portanto, os países demandam dólares dos Estados Unidos mesmo que uma parte do seu comércio externo não suceda com os EUA. E como é que os países conseguem ter acesso a dólares dos Estados Unidos para transacionarem entre si? Têm de vender bens aos EUA; daí o balanço comercial estruturalmente negativo na balança de pagamentos americana, alvo de críticas do actual governo daquele país.
Voltemos ao nosso exemplo: para Angola poder importar bens alimentares da África do Sul, tem de ter dólares dos Estados Unidos. E obtém-nos vendendo petróleo. Se este petróleo for vendido a Singapura, este país tem de ter dólares dos Estados Unidos para pagar a Angola e, assim, consecutivamente. Como os EUA são o único emissor do dólar dos Estados Unidos, eventualmente, a Singapura tem de vender um bem aos EUA e ser pago naquela moeda, para depois poder pagar pelo petróleo angolano. O sistema financeiro norte- -americano (FED e instituições de crédito) cria dólares que pagam importações e transformam-se num bem público internacional, de suporte ao sistema de comércio internacional.
Qual é a preocupação das autoridades norte-americanas? À medida que cresce a economia mundial, cresce o comércio internacional. O crescimento do comércio internacional - ainda por cima a um ritmo superior ao da economia dos EUA - leva à uma maior procura por activos denominados em dólares dos Estados Unidos e, portanto, à sobrevalorização dessa moeda, apesar do crescente défice comercial do país que a emite. Em consequência disto, a sobrevalorização do dólar dos Estados Unidos leva ao embaratecimento das importações e prejudica a competitividade da indústria norte-americana. Stephen Miran chega a afirmar que os EUA têm défices comerciais não por importarem em excesso, mas importam em excesso por terem de criar activos em dólares dos Estados Unidos para servirem de activo de reserva e suportarem o crescimento da economia global (Miran, 2024).
E agora, a ligação entre as reformas ao sistema de comércio internacional, do sistema financeiro internacional, a promoção do parque industrial norte- -americano e a segurança nacional dos EUA. A aplicação de tarifas às importações de outros países, pelo governo norte-americano, visa aumentar os custos das importações, obrigando a que, para ter acesso ao mercado dos EUA, as empresas que transacionam com a economia americana tenham que deslocar as suas unidades fabris para território americano (onshoring), onde as tarifas são nulas.
Ao promover o onshoring de actividade industrial, o governo dos EUA estará a promover empregos e, simultaneamente, a controlar a cadeia de produção e abastecimento de produtos e equipamentos considerados críticos para a segurança nacional e não só. Se os EUA importarem menos do mundo, os outros países vão precisar de menos dólares dos Estados Unidos, reduzindo a procura por esta moeda e, consequentemente, o valor da mesma. É esperado que esta desvalorização sustente a competitividade das exportações norte-americanas.
*Pedro Castro e Silva, Ex-vice-governador do BNA