Ultrapassar a crise em Moçambique só com partilha do poder, defendem analistas
"Construir coesão social deve ir além da retórica. Requer acções concretas e pragmáticas. No caso de Moçambique, isto inclui a partilha do poder com a oposição e da riqueza com a população em geral", defende Borges Nhamirre.
Um dia depois da primeira-ministra moçambicana, Benvinda Levi, receber as pastas, após ser empossada por Daniel Chapo, Venâncio Mondlane, que se autoproclamou Presidente do país, divulgou o seu primeiro decreto presidencial, com as 25 medidas para os 100 primeiros dias do seu "governo sombra".
O candidato apoiado pelo Podemos deixa, assim, claro que não desarma e que vai continuar a liderar os protestos contra os resultados oficiais, o que levou analistas a defender o diálogo com Mondlane e a sua eventual integração no governo. "Se não conversas com Venâncio Mondlane, não resolves o problema pelo simples facto de que quem lidera as manifestações é Venâncio Mondlane", defendeu o analista moçambicano Américo Sozinho, citado pela RFI.
Borges Nhamirre, investigador do Instituto de Estudos de Segurança (ISS), defende que a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) tenha uma intervenção mais ousada, para ajudar a resolver a crise pós-eleitoral, que incluam "esforços diplomáticos" para persuadir a Frelimo a "considerar uma partilha de poder".
Caso contrário, os protestos irão continuar, enquanto Mondlane os convocar, tal o legado que o Presidente Filipe Nyusi deixou a Daniel Chapo, o candidato da Frelimo que assumiu a presidência no dia 15 de Janeiro. "A actual crise decorre do regime autoritário do ex-Presidente Filipe Nyusi, marcado por fraude eleitoral sistemática, perseguição e assassinato de líderes da oposição e exclusão de partidos políticos rivais e da sociedade civil da governação", justifica Nhamirre.
Já na terça-feira, Daniel Chapo admitiu integrar Mondlane, num "governo inclusivo", possibilidade que o candidato do Podemos está disposto a aceitar, segundo a Agência de Informação de Moçambique.
Elites negligenciaram a maior parte da população
Borges Nhamirre nota que os protestos em Moçambique são a "ponta do icebergue de uma sociedade dividida e intolerante que precisa de reconciliação". E que o problema "não é apenas político", resultando de "desigualdades económicas, exclusão política e corrupção da elite". "As elites políticas, que são também elites económicas ou estão intimamente ligadas a estas, negligenciaram a maior parte da população, especialmente os jovens. Enquanto os professores das escolas públicas enfrentam meses sem salários, os alunos estudam sem manuais e os médicos fazem greve por melhores salários, a classe política goza de um estilo de vida luxuoso, distribuindo presentes e veículos caros entre si", descreve.
A exclusão de Venâncio Mondlane das reuniões convocadas pelo ex-Presidente Nyusi, após dois meses de violência pós- -eleitoral, acabou por contribuir para "o fracasso do diálogo", considera Nhamirre. "Daniel Chapo prometeu não descansar enquanto o país não estivesse unido e coeso". Mas "construir coesão social" requer "acções concretas e pragmáticas. No caso de Moçambique, isto inclui a partilha do poder com a oposição e da riqueza com a população em geral", conclui.
Enquanto o novo governo lida com os indicadores económicos corroídos pelos protestos que esvaziaram os cofres públicos - cenário que levou a ministra das Finanças, Carla Louveira, a admitir a necessidade de "reestruturação" da dívida pública - Venâncio Mondlane apresentou 25 medidas, naquilo que denominou como o seu "primeiro decreto presidencial". As medidas incluem o direito à autodefesa contra a violência policial e compensações aos familiares das vítimas das manifestações .
Segundo a ministra das Finanças, Carla Louveira, o país perdeu quase 652 milhões USD devido às manifestações, que comprometeram a arrecadação de receita. Dezembro foi o mês que registou mais perdas, estimadas pelo governo em 14 mil milhões de meticais (217,2 milhões USD).