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Domínio do fogo marcou a evolução social

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Os humanos descobriram o fogo entre 400.000 e um milhão de anos atrás. As suas chamas foram usadas para cozinhar alimentos, defender-se de predadores e iluminar a escuridão. Mas serviram também para fazer evoluir o pensamento humano, ao reforçar as tradições sociais e cultivar a imaginação.

Hoje já ninguém se reúne em redor de uma fogueira para contar histórias. Mas, durante 99% da nossa história, fizemo-lo. Estas reuniões potenciaram a evolução do pensamento e o desenvolvimento da ideia de comunidade alargada que tornou possível que os humanos colonizassem o planeta, assinala um estudo antropológico realizado com bosquímanos do Kalahari.

Na realidade, o domínio do fogo por antigas espécies de hominídeos, entre 400 mil e 1 milhão de anos atrás, não teria acelerado a nossa evolução apenas ao afugentar predadores e permitir preparar os alimentos, aumentando a sua digestibilidade e proporcionando maior consumo de calorias, entre outras vantagens directas do seu uso.

Investigações anteriores haviam estudado como influiu o facto de cozinhar os alimentos na dieta e anatomia, mas sabia-se pouco acerca do efeito que teve a extensão do dia, graças à luz do fogo, na cultura e na sociedade, assinala a antropóloga Polly Wiessner, da Universidade de Utah, nos EUA, em artigo publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Com as fogueiras acesas, os nossos antepassados também alteraram o seu ciclo circadiano e, ao iluminarem a escuridão nocturna, criaram um novo tempo e espaço de convivência que teria ajudado ao seu desenvolvimento cognitivo e social.

Durante mais de 40 anos, Polly Wiessner estudou e conviveu com tribos de caçadores-colectores do Deserto do Kalahari, região semiárida do Sul da África entre a Namíbia, o Botswana e o Sul de Angola, registando as suas conversas tanto durante as actividades diárias quanto à noite, quando se reuniam em torno das fogueiras. Inicialmente, estes registos, a maior parte feita na década de 1970, tinham outros fins, mas, reavaliando o material, a antropóloga descobriu que o tema das conversas variava muito do dia para a noite.

O estudo de Wiessner analisou dezenas de conversações ocorridas durante o dia e à luz do fogo entre bosquímanos !Kung, também conhecidos como bosquímanos Ju/hoansi (o ponto de exclamação e o apóstrofo nos nomes representam o som clic no seu idioma), 4.000 dos quais vivem agora no deserto do Kalahari no Nordeste da Namíbia.

No seu trabalho, a antropóloga explica que os !Kung realizam reuniões em torno do fogo na maioria das noites, em grupos até 15 pessoas. Um acampamento tem casas para cada família, mas à noite as pessoas costumam convergir numa única casa. Ela analisou apenas as conversações envolvendo cinco ou mais pessoas. À noite, 80% das conversas eram histórias e apenas 7% incidiam em reclamações, críticas ou fofocas e 4% em questões económicas.

As conversas diurnas diferiam muito: 34% eram reclamações, comentários e mexericos para regular as relações sociais; 31% eram questões económicas, como a caça para o jantar; as piadas constituíam 16% e apenas 6% eram histórias. Não podemos saber o passado dos bosquímanos - assinala Wiessner -, mas estas pessoas vivem da caça e da recolecção e em 99% da nossa evolução assim viveram os nossos antepassados.

Que acontece durante as horas da noite desses caçadores-recolectores passadas à luz do fogo? A resposta ajuda a aclarar como essas horas contribuem para a vida humana.

Luz alarga os nossos dias

Há algo no fogo no meio da escuridão que une, alivia e também excita as pessoas. É algo íntimo, diz a antropóloga. O período nocturno em volta da fogueira é um tempo universal de união, de repassar informações sociais, de diversão e de dividir emoções. À noite, falamos sobre as características de pessoas que não estão presentes e fazem parte das nossas redes sociais maiores, de pensamentos sobre o mundo espiritual e como ele influencia o homem. E temos ainda cantos e danças, que também ajudam a unir o grupo.

Segundo a autora do estudo, o ser humano é único por criar laços fora do seu próprio grupo, algo que não faz qualquer primata não humano. Isto permite-nos formar comunidades que não estão no mesmo espaço, mas sim na nossa mente, incluindo a nossa capacidade para criar redes virtuais, o que para os bosquímanos pode ser comparável a manter contacto com outras pessoas a 200 km de distância.

As histórias à luz do fogo, as conversações, as cerimónias e as celebrações despertaram a imaginação humana e as capacidades cognitivas para formar estas comunidades imaginadas, tanto se se trata das nossas redes sociais, todos os nossos parentes na Terra ou as comunidades que nos unem ao mundo dos espíritos, assinala Wiessner.

Assim, a reunião em torno de uma fogueira permitiu aos grupos humanos compartilharem histórias que os levaram a reforçar os seus laços e soltar a imaginação para vislumbrar um sentido mais amplo da comunidade, segundo conclui o estudo. Claro que agora não há necessidade de acender uma fogueira.

A luz artificial, como uma fogueira, permite-nos alargar os nossos dias, mas - e aqui está o truque - também as nossas horas de trabalho. Como passar esse tempo debaixo de uma lâmpada, se a ler um conto aos nossos filhos ou a terminar um relatório no tablet, é algo sobre o que, segundo a antropóloga, deveríamos reflectir.

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