"Se a música me desse o suficiente dispensaria o salário há muito tempo"
O autor da música "Sou angolano" está a preparar aquele que poderá ser um dos seus últimos discos. Nesta entrevista, o músico destaca que os adidos culturais devem defender os trabalhos dos artistas nacionais no exterior, e a cultura deve ser prioridade para uma nação.
Com 52 anos de carreira, qual é o balanço que faz?
O balanço que faço destes 52 anos é positivo. Positivo do ponto de vista que aconteceram mais coisas boas do que más. Mas as coisas más que aconteceram, muitas delas prevalecem até aos dias de hoje. Mas, em qualquer profissão, em qualquer ofício, os protagonistas têm de saber ultrapassar as dificuldades, têm de saber vencer as barreiras e conseguir, portanto, atingir os seus objectivos. Eu seguramente consegui. Porque tive uma grande contribuição a nível da cultura musical, em Angola.
Os primeiros passos na música foram dados com outras artistas?
Sim, em 1973 formamos os The Seven Boys, os Sete Rapazes. Éramos um conjunto completo. Tocávamos batoque, dikanza, violão e guitarra. Mais tarde, em 1977, fui estudar na República de Cuba e, enquanto estudava eu, o engenheiro António Venâncio, candidato a presidência do MPLA, era o meu solista, na altura, o Espírito Santo de Vasconcelos, era o guitarrista, o Sintorinhas Manuel, era o tamborista, o Gourgel era percussionista e o Regino era o baterista, que mais tarde foi substituído pelo Jorge Conceição. O nosso grupo era o Combo Revolución, um grupo composto por estudantes.
Como entra para os Jovens do Prenda?
Em 1985 entro para os Jovens do Prenda, como vocalista. Em 1987 fomos Prémio Welwitschia da Rádio Nacional de Angola.
E quando decide cantar a solo e porquê?
Decide cantar a solo depois que, em 1996, sou vencedor do prémio Sonangol da Canção. O regulamento indicava que o vencedor teria o direito à gravação de um CD, então é aí que gravo "Adão e Eva", e parto para a minha vida a solo.
A primeira vez que pisou um palco como profissional foi em 1973. De lá pra cá, como descreve o percurso?
O que se descreve na minha memória é sempre a trajectória, e sinto o prazer e a vontade de ter que deixar algum legado para a nova geração.
Há essa transição de conhecimento para a nova geração?
Há sim, do meu ponto de vista, tenho tido contribuições muito valiosas para a nova geração. Tenho muitas participações em discos de jovens promissores, em termos de carreira. Escrevi e partilhei muitos textos, um deles fará parte do CD da Anabela Aya, que vai lançar brevemente. Acho que o que me falta agora, no princípio do fim, é deixar um bom legado para a nova geração. Contribuindo mais, participando em actividades com eles, os jovens, dando-se assim o sabor de fazer a música angolana, porque temos que primar por preservar as nossas raízes.
Como olha o estilo musical semba?
O semba que se fazia há 50 anos é muito diferente do que se faz hoje. Dentro dos anos 40, em que o Angola Ritmos começou a fazer o trabalho da construção do semba, tocava-o de maneira diferente, um compasso mais sincopado, mais cadenciado, 20 Anos mais tarde, o semba já apareceu com BPMs mais acelerados. Já começamos a dançá-lo de outra maneira, e hoje até ela já se confunde com outro estilo de dança, o qual é chamada Kizomba. A Kizomba como dança nunca existiu, mas admito que seja uma dádiva dos novos tempos, onde ela se funde com a lambada, com o tango e o próprio semba. Há três alinhamentos, há uma triangulação de danças dentro da Kizomba, que fazem ela própria, mas difere do semba. O semba é também um compasso ternário, como a Kizomba, mas é mais sincopado, mais cadenciado.
É também homem do carnaval. Como se define culturalmente?
Defino-me como um fazedor de artes, de facto. Um fazedor de artes não tem limitações. Ele canta no carnaval, canta no cabaré, canta no dancing, canta na boate, canta no restaurante, canta num espetáculo, canta num salão de festa. Ele canta em todo o lugar. Em termos geográficos se define como multifaceta. Em toda a geografia onde circunda o fenómeno da dança, o músico canta.
No passado cantavam momentos que o País atravessava, hoje canta os problemas que o País vive?
Canto, sim. Temos várias formas de interpretar os factos, uns de forma mais compulsiva e outros de forma mais moderada, mais urbana. Podemos olhar para um fenômeno do mesmo jeito e interpretá- -lo de maneira diferente. Hoje, por exemplo, estamos com dificuldades do ponto de vista social e financeiro. Mas porquê não persuadir as pessoas a olharem mais pela luta, pelos seus desenvolvimentos pessoais?! Não podemos viver de lamentos e contemplações de que não temos emprego. Não temos emprego para trabalhar na formação que fizemos, mas podemos fazer outras coisas que talvez nos deem, não tanto o que nós desejámos, mas algum rendimento para a nossa sobrevivência. O que eu quero dizer é o seguinte, que ao invés de apontar o efeito, eu ataco a causa. Se a causa do efeito é o desemprego, então é melhor aconselhar a pessoa a não cruzar os braços, seguir em frente e lutar para conseguir.
E então...
Tenho uma forma diferente de fazer a música de intervenção. Um exemplo, a minha música "o meu chão tem tudo". É uma canção de intervenção. Mas estou de forma interpretativa a persuadir o Estado a olhar para o campo. E infelizmente, anos mais tarde, surgiram os projectos de diversificação da economia. E a primeira coisa que se atacou foi o campo. Quando em 1991, se me tivessem dado ouvidos, talvez nos anos 2010, 2015, estivéssemos a exportar tudo o que produzimos. Agora começamos tarde, mas mais tarde do que nunca.
O País tem espaço suficiente para a maior divulgação da arte, sobretudo a música?
Temos alguns, mas muito poucos. Os espaços para que os músicos pudessem evidenciar, trabalhar são muito escassos, porque não há políticas de massificação cultural. As políticas de massificação cultural existiriam se olhássemos primeiro pelas condições de trabalho que tínhamos que dar aos artistas para massificar a cultura, no seu todo, estou a falar também do teatro, da dança, das artes plásticas e da literatura. Veja que temos até hoje poucas editoras, por isso é que os livros são muito caros. Não temos produtoras completas. Começamos a gravar um disco aqui e 40% temos que fazer no exterior. Porque não temos capacidade tecnológica. Temos alguma capacidade, mas não o suficiente porque as verdadeiras obras são feitas no exterior devido aos níveis de formação. Em 50 anos de Independência é muito triste. Precisamos formar quadros para termos uma cadeia de produção mais valiosa.
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