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África

"Dizemos que Angola está bem economicamente se Angola conseguir pagar o seu serviço de dívida"

Carlos Lopes, economista (1.ª parte)

Numa altura em que se fala da necessidade premente dos países mais ricos apoiarem a vacinação dos países mais pobres, conversamos com o economista Carlos Lopes, sobre estas e outras questões e ainda sobre o seu mais recente livro, "África em Transformação. Desenvolvimento Económico na Idade da Dúvida". A primeira parte de uma entrevista ao Expansão.

Numa altura em que, e mais uma vez, se acentua o fosso norte/sul, agora no que diz respeito às vacinas, quais são, no curto e médio prazo, as consequências?

Na maior parte das análises económicas, dá-se bastante ênfase a duas mega-tendências: a mega tendência tecnológica e a mega tendência climática, mas não se gosta muito de falar da mega tendência democráfica, porque ela é incómoda politicamente, e eu vou explicar porquê. Nós temos uma transição demográfica em África, na explicação dos demógrafos, a transição demográfica é quando começa atingir-se o pico do crescimento provocado pela fertilidade e começa a baixar a fertilidade - todas as regiões do mundo passaram por essa transição demográfica, nós estamos a vivê-la mais tarde do que os outros, mas estamos a vivê-la num contexto histórico, num contexto global, muito diferente de todas as outras transições demográficas que nos precederam. Está a ocorrer numa altura em que o resto do mundo está a envelhecer. E isto é um dado extremamente importante e que faz da mega tendência demográfica - porque vai haver grandes transições demográficas no mundo, provocadas essencialmente por causa do envelhecimento da população - uma realidade que é incontornável. O que o vírus vem trazer é uma espécie de demonstração de quais vão ser os impactos de não se tomar em conta essa mega tendência demográfica.

Por exemplo...?

É evidente que a África é menos afectada pelo vírus do que outras regiões do mundo por causa da sua média de idade, que é de 19 anos neste momento, e como é óbvio, as comorbilidades que estão associadas a esta família de vírus manifestam-se muito mais em pessoas que atingem idades mais avançadas. Um continente que tem uma média de idade de 19 anos, é evidente que vai sofrer menos devido ao vírus. E não vale a pena vir com conversa de que se testa menos, que as estatísticas não são boas. Tudo isso é verdade, mas a realidade mais importante é de facto a média de idades.

Esta tendência de mega transição demográfica é favorável ao continente africano.

Mas ao mesmo tempo em que é favorável do ponto de vista da propagação do vírus e da mortalidade associada ao vírus, ela acaba por revelar um determinado nível de hipocrisia que existe no discurso dominante sobre as questões do desenvolvimento, porque é evidente, também, que o vírus, como todos os outros vírus, tem mutações e que essas mutações são muito mais prováveis de se desenvolver em ambientes em que ainda não se atingiu a imunidade de grupo e, portanto, isto significa que África vai ser um gerador de vírus novos por não estar vacinada, por não atingir a imunidade de grupo, o que vai afectar menos a própria África do que o resto do mundo. Mas aí vão associar, seguramente, a África o estigma das diferentes vagas que vão aparecer.

A Organização Mundial de Saúde e o secretário-geral das Nações Unidas têm alterado para isso mesmo.

Isto devia ser uma espécie de alerta para que os países, as organizações que têm meios, terem o interesse especial em vacinar África o mais depressa possível. E não é isso que está a ocorrer.

E, na sua opinião, que medidas concretas é que deviam ser tomadas imediatamente?

É evidente que esta realidade que acabei de descrever, traduzida em termos económicos, está presente no debate sobre o comércio, mais especificamente no debate sobre propriedade intelectual, mas em matéria de comércio e proteccionismo temos uma atitude nova que está associada aos medos criados pelo vírus, por exemplo, quando se produz um determinado antídoto, máscaras ou ventiladores, testes ou vacinas, há um refluxo da atitude liberal de comércio livre e são criadas algumas forma de proteccionismo camuflado. Os Estados Unidos, imediatamente, proibiram a exportação de vacinas para o resto do mundo, agora vão oferecer o excedente, mas proibiram a exportação. A Grã-Bretanha fez a mesma coisa. Temos essa incidência directa no comércio, uma atitude muito diferente do que é o discurso dominante, liberal, e que é a reintrodução de formas de proteccionismo camufladas, e depois temos o debate sobre a propriedade intelectual, temos uma situação em que quanto mais velha for uma população, menos ela é parte da força de trabalho activa de um país, mais o país tem dependentes do seu sistema social - há mais gente a receber do que a gente a contruibuir para o sistema - e a única forma de garantir a qualidade de vida desses países, é tentar transferir o máximo de valor nas cadeias para a propriedade intelectual, porque esses países controlam a inovação e tem mais capacidade para fazer tudo o que é intangível, software, etc, e menos valor para aquilo que é a força de trabalho física. O facto de África ter uma população mais jovem, que é aquela que vai ter de assumir no futuro as tarefas físicas, algumas que estão em criação - quanto mais envelhece a população mundial mais precisamos de enfermeiros, mais precisamos de pessoas que se ocupem de idosos - esse trabalho físico tende a de ser desvalorizado na cadeia de valor, ou seja, paga-se menos por esse trabalho e paga-se muito mais pelo trabalho intagível, e a propriedade intelectual transforma-se em algo extramemente importante, a proteger, daí que o debate sobre as vacinas é o debate de não abrir mão das patentes. As patentes são a ponta do icebergue, as patentes da vacina podem abrir a caixa de Pandora da diminuição de valor da propriedade intelectual.

Simplificando, vamos continuar a olhar para o continente africano como fornecedor de mão-de-obra física, barata, e isto não é necessariamente bom?

Para que a força de trabalho seja barata é preciso que a migração seja difícil, se for fácil vai valorizar essa força de trabalho.

Mas os líderes africanos ainda não perceberam, por exemplo, que a Saúde pode ser um negócio. E, já agora, como é que a pandemia pode ter contribuído, ou não, para que os países africanos alterarem os seus frágeis sistemas de saúde?

O problema fundamental, a nível económico, é podermos chegar à transformação estutural - que os economistas definem como a transição da baixa para a alta produtividade, que deve ser possível quando se entra na era industrial das relações económicas. A industrialização é fundamental, se não houver industrialização acelerada pouco será possível, porque a economia não é suficientemente formal, e como não é, descarta a necessidade de lidar com o conjunto da população - é por isso que há 40% de pessoas que nem sequer têm registo civil - e, portanto, temos uma situação, em que a taxa de pressão fiscal - aquilo que o governo pode ir buscar - é muito baixa. E como não há formalização da economia, as taxas média em África são de 16% (em Portugal, por exemplo, são de 35%), logo, temos grande dificuldade de mobilização de recursos internos. O país vive das externalidades, e, dessa forma, é notado pela agências de notação, pelos analistas, em função da sua capacidade de responder às suas obrigações internacionais e não às obrigações internas. Dizemos que Angola está bem economicamente se Angola conseguir pagar o seu serviço de dívida, não dizemos que Angola está bem porque as pessoas têm acesso à protecção social. Como se lida só com as externalidades, então o que é necessário para manter esse países flutuando é garantir que essas obrigações internacionais são bem geridas, e para isso é suficiente gerir bem aquilo que os economistas chamam de vantagens competitivas, no caso de África, é exportar matéria-prima, exportar recursos naturais, sem grande transformação.