Por entre vitórias e exclusões profundas, há quem anuncie o que ainda está por vir
O artista conta ao Expansão as suas vivências mais recentes, com direito a um périplo pelo centro-sul do País, e as suas vivências artísticas e pessoais. Ao desmontar o cânone mainstream nacional, o músico está, no fundo, a abrir novas possibilidades à cultura angolana.
Chegou ao encontro à hora marcada e logo a avisar que adora África, como que a justificar o local escolhido, um antigo mas tradicional hotel no Baleizão, na Baixa de Luanda. Aquela zona histórica da capital é mesmo o berço de uma cidade que hoje se espraiou até quase Catete e 10 milhões de pessoas. Depois vestiu-se com uns óculos vindos do futuro, talvez um afrofuturo completamente independente, sobretudo nas ideias, nos tempos, nos olhares, nos sonhos, nas diversidades todas possíveis e impossíveis.
Ali ao lado fizeram-se gelados famosos, mas a verdade é que agora cheira a mar e a uma marginal que serve de escudo para tudo de bom e mau que se passa na banda. Em cima está uma Fortaleza antiga, mas sempre controladora, omnipresente, que observa a cidade e as pessoas de todos os ângulos e todas as horas, agora meio escondida entre novos arbustos, velhas estátuas, novas possibilidades, sóis escaldantes e shoppings estridentes.
Hélder Mendes, o artista, o músico de raiz, criador de sonoridades pop e rock em kimbundu e em todas as outras línguas, o estilista e ex- -missionário leigo que reinterpreta clássicos da música popular angolana, é uma espécie de trovador que anuncia o regresso do futuro.
Entretanto, foi mesmo sobre a cidade e as cidades todas que a conversa foi-se desenhando. As dificuldades para estacionar e tal, as burocracias que nos parecem atrasar a vida mas que, no fundo, são uma forte manifestação do poder que nos manda, naquela azáfama paranóica de controlar todos os tentáculos da sociedade, em cada passo e em cada par de calças, de cabelos, na arte, na política e na economia e tudo o resto que houver para ser controlado.
Recém-regressado de um périplo amigável pela região centro- -sul, entre uns dias no Huambo para conhecer a cidade-monumento colonial e o que a rodeia, nascida das grilhetas do trabalho nativo braçal, das inúmeras guerras até ao estertor final e do caminho-de-ferro de Benguela, foi então na passagem fugaz, mas marcante pelo Kuito (Bié) - quem vai ao Huambo e ao Bailundo tem de finalizar as linhas do triângulo com uma passagem pelo Kuito - que Hélder Mendes vislumbrou um outro País.
É por isso que estas andanças abrem sempre várias possibilidades que são promissoras. Neste caso já não tão agarradas a uma velha ideia de poder e de extensionismo político soturno, de rosto único pendurado por todos os cantos e centralizador até à milésima casa, agora (ou terá sido sempre isto, mesmo quando oficialmente não era?) ferozmente capitalista mas sempre pouco inclusiva nas suas projecções e necessidades.
"Sair de Luanda em passeio é especial, é tão bom perceber que há outras vidas e outras coisas a acontecer. É um privilégio ver isto em Angola, porque nós temos muitas Angolas", assinala o artista, como que a advertir quem adora ideias únicas, fórmulas infalíveis e sistemas tão rígidos que até a irreverência pode virar um defeito fatal.
Também não há dúvida que Luanda é o epicentro das maiores possibilidades - e das maiores exclusões. É também onde o empreendedorismo rapidamente pode virar pura sobrevivência. Sem rodeios e passos intermédios. "Temos de criar os nossos empregos", sugere inicialmente Hélder Mendes, mas com pouca convicção.
É verdade que a capital dá esse espaço todo e poucos contextos em Angola podem realmente falar com propriedade destas coisas.
Mas a concentração de poder (político, financeiro, administrativo, económico, whatever) e a ambição de dar certo na vida, acaba por sobrepor-se naturalmente a ideias mais interessantes e, quem sabe, mais humanas, menos robotizadas, canonizadas e que incluam a possibilidade de transgredir. Mais adaptadas a quem gosta de contemplar, criar, reflectir, ser pessoa à sua maneira. Não podemos ser todos iguais, não queremos ser todos iguais.
"Para vivermos em Luanda necessitamos de uma forma própria de agir e quem vem para aqui tem de se adaptar a isso. Temos de ser vivos, temos de ser vijú", sublinha Hélder Mendes, no linguajar da capital onde "maiar é crime" e ser boelo é sinónimo de fraqueza (quase) inultrapassável. É também por isso que a sobrevivência em Luanda é uma tarefa agitada e altamente consumidora de energia. Sofre-se no corpo e no amor. Para além do mais, o artista acaba por traçar aqui a possibilidade de um paralelismo entre a cidade e o campo, onde tem as suas raízes familiares.
"Apesar de ser natural da aldeia de Kaxissa, município de Cambambe (Cuanza Norte), eu e a minha mãe vivemos um ano no Waku Kungo, em 1981. Tinha apenas 8 meses. A minha mãe foi à procura de melhores condições, ela ouviu dizer que podia fazer alguns cursos pagos pelo Governo. Mas agora que lá voltei, passados 43 anos, senti-me logo abraçado, as ruas são cheirosas, fui mesmo muito bem recebido", conta Hélder Mendes ao Expansão.
Leia o artigo integral na edição 762 do Expansão, de sexta-feira, dia 09 de Fevereiro de 2024, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)