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Porque é que o mundo corporativo odeia pés?

EM ANÁLISE

O conforto não é prioridade! Podemos ir mais longe: o desconforto parece ser valorizado, tanto nas mulheres (imagine-se o dia todo de salto alto) como nos homens (observe bem o ar de sofrimento do funcionário, depois de um dia de trabalho, usando um sapato social masculino novo, estreito à frente, como é característico desse tipo de sapato).

Você faz parte de uma equipa que vai avaliar candidatos a um cargo na empresa. Os candidatos são jovens, inteligentes, um pouco nervosos. Você olha para eles, de cima a baixo, e, quase sem se aperceber, já tomou uma decisão sobre quem tem hipótese e quem não tem qualquer hipótese de conseguir um emprego. Entre aqueles que não lhe agradaram está um jovem que veio para a entrevista de Crocs! "Que falta de noção, falta de respeito, falta de tudo!" - pensa você, bastante incomodado, torcendo o nariz, e sentindo-se quase pessoalmente insultado pela falta de cuidado do jovem. No entanto, o jovem estava extremamente bem apresentado. Só que estava com uns (quase discretos) Crocs pretos...

Mas o que é que são Crocs? Crocs é uma marca norte-americana de calçado, criada em 2002. Hoje, o termo aplica-se de forma alargada a um determinado tipo de calçado: os crocs (como as havaianas, cujo significado se expandiu e já ultrapassou a própria marca brasileira de chinelos Havaianas; ou ao jeito das giletes, que podem já não ser da marca Gillette).

Os crocs apresentam inúmeras vantagens: são confortáveis (ahhhhh são! São muitooo confortáveis), são antiderrapantes, são impermeáveis, não absorvem odores, lavam-se e secam- -se facilmente, calçam-se com facilidade, são leves, macios, práticos, arejados, duráveis, não apertam os dedos à frente, são unissexo, aparecem em diversas cores e com muitas possibilidades de personalização (com pins, lacinhos, enfim, o que se desejar), e há crocs de todos os preços. Provavelmente devido a essas características: é frequente vermos médicos e enfermeiros com crocs nos pés, para aguentar, de forma confortável e higiénica, longos turnos de trabalho. Portanto: só pontos positivos. Mas, apesar de inovadores, coloridos e extremamente criativos, não conquistaram o mundo corporativo. Pelo contrário: no mundo corporativo, os crocs parecem estar apenas um pouco acima das havaianas, na lista de calçados proibidos.

É óbvio que não são apenas os sapatos que são rigidamente regulados pelas corporações. Temos a obrigatoriedade dos fatos, o tamanho das saias, o tamanho dos decotes, o quão justas as calças masculinas podem ser, as cores que se podem ou não usar (se acredita que as cores não importam, experimente ir com um fato verde fluorescente), a quantidade e o tipo de acessórios, tatuagens e piercings permitidos. Enfim, muitas regras - explícitas ou implícitas, mas sempre com peso sobre a forma como julgamos e somos julgados - e muitas restrições. Nessas regras, uma coisa é certa: o conforto não é prioridade! Podemos ir mais longe: o desconforto parece ser valorizado, tanto nas mulheres (imagine-se o dia todo de salto alto) como nos homens (observe bem o ar de sofrimento do funcionário, depois de um dia de trabalho, usando um sapato social masculino novo, estreito à frente, como é característico desse tipo de sapato).

O mundo corporativo privilegia, definitivamente, uma imagem de seriedade e elegância em detrimento do conforto. Porquê? Vejamos algumas razões:

1. Elitismo. Como existem crocs para todos os bolsos, são comuns em ambientes informais (nas férias e fazendo turismo) e junto dos mais jovens, há pessoas que acreditam que os crocs não são suficientemente sérios ou formais para o local de trabalho. O produto mais emblemático da marca Crocs são as socas (tamancos, clogs). Ora, as socas, tradicionalmente, estavam associadas à classe trabalhadora, o que pode, de um modo quase inconsciente, fazer-nos associar os crocs a algo, mais uma vez, menos "especial", menos caro, menos desejável.

2. Estética acima do conforto. A aparência em detrimento do "recheio". A valorização do exterior visível em detrimento do interior invisível. Em geral, nós privilegiamos a forma em detrimento do conteúdo. Vou dar um exemplo que sempre me choca quando me deparo com ele: quando os professores dão zero a uma resposta correcta, apenas porque a resposta está rasurada, tem borrões, ou está escrita fora da linha (o tempo absurdo que os alunos despendem a escrever composições a lápis, para depois passarem a tinta, sem rasuras, é um impedimento à sua criatividade e ao raciocínio). Do mesmo modo, nas corporações não importa o conforto, o que interessa é que o calçado seja chique.

3. O belo associado ao bom e ao justo. Já Platão concebia essa associação, e nós continuamos a fazê-lo, como nos explica Edward L. Thorndike (1874-1949), através do efeito halo: associamos um par de sapatos caros, elegantes e pouco confortáveis à beleza, à competência, à seriedade, ao cuidado e à responsabilidade.

4. Sem dor, não há ganho ("no pain, no gain"). Acreditamos, talvez inconscientemente, que calçar uns sapatos desconfortáveis, que causam dor e distorcem os pés, trará recompensas no trabalho, talvez até uma promoção. Encontramos a expressão "no pain, no gain" associada ao exercício físico: é preciso sofrer, para conseguirmos resultados. Mas, na verdade, a ideia de dor e sacrifício associada a recompensas eternas é muito mais antiga, e pode ser encontrada na Bíblia.

Leia o artigo integral na edição 793 do Expansão, de sexta-feira, dia 13 de Setembro de 2024, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)

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