"Nós artistas temos de ter a capacidade de atender todas as classes"
Histórias de uma infância vivida no centro de acolhimento estão expostas em telas de um jovem, em forma de protesto. As 15 obras do artista plástico ficam patentes até ao dia 7 de Agosto, na galeria Tamar Golan.
"A Fortaleza do Além" é o tema da sua primeira exposição individual. O que quer trazer com esse tema?
Trouxe o reflexo da minha história, no espelho da sociedade africana e angolana, em particular, e também o reflexo dos momentos de dor e felicidade que marcaram, que tatuaram a minha alma. Toda essa trajectória de vida, desde a rejeição familiar, às ruas, os lares, até à reinserção social.
Porque foi rejeitado?
Por motivos familiares, preconceitos. Eles acreditavam que voava à noite. Que eu era feiticeiro. Ainda hoje algumas tias acreditam nisso, mas tudo bem. E foi isso que me fez sair do seio familiar, porque cansei de ser cobaia dos curandeiros. Era muito torturador. Eu era muito pequeno, tinha 11 anos, não suportei e saí de casa.
E onde viveu esses anos todos?
A minha primeira noite foi numa casa de banho. A segunda foi num cemitério e depois fui de rua em rua até parar num lar de acolhimento.
E actualmente?
Actualmente estou na Chicala 2, sou professor de artes plásticas, sou artista plástico e vivo da arte.
Formou-se em artes plásticas?
Não, eu sou um autodidacta, mas é claro que tive apoio de professores de arte. Por exemplo, lá no centro, o Christian Miller foi e continua a ser meu professor e colega, o Paciência Ambuena, Carmen Prendes, foram muitas pessoas. No centro do Padre Horácio, actualmente é o Centro de Acolhimento Arnaldo Jansen (CACAJ), onde cresci, lá também me ajudaram bastante, a fundação Rui de Matos, a fundação Arte e Cultura, a galeria Palomino Artes, então vou tirando um bocado daqui e um pouco dali. Até alguns universitários, quando chegam ao pé de mim, perguntam se me formei, onde e qual é o meu curso? Mas não, eu sou um autodidata.
Então, nos seus quadros, apresenta essas vivências?
Sim. Faço um reflexo da minha história, como um testemunho social de superação, porque algumas exposições onde fui, de pintura, literatura, cinema, as experiências que fui buscando também mudaram muito a minha vida. As palavras têm força, as frases têm força, então sinto que se isso muda a minha vida, eu também posso ajudar outras pessoas que estão na fase pela qual passei ou estão a passar, ou que futuramente podem já ter um cavalo-de-batalha para não passarem pela mesma situação. E também ressaltar um pouco mais da sensibilidade, a forma de tratamento, naquilo que tange às crianças, os idosos, os autistas, são na maioria das vezes as pessoas que passam por isso e são abandonados, ficam jovens, envelhecem e morrem na rua. Então, praticamente o reflexo social é um protesto, é uma sensibilização.
Acha que esse protesto está a ser acolhido, através das suas obras?
Acredito que sim. Desde o dia da inauguração da exposição, fiquei com certeza, porque houve observadores, visitantes, que, sem eu falar, conseguiram identificar-se nas obras e sentiram- -se muito bem, muito felizes e agradeceram bastante. Senti nos olhos das pessoas, elas não voltaram do jeito que entraram na galeria. E é isso que, no fundo, nos faz felizes. Não é aquilo que o artista fez, ele já sabe do conceito, mas sim o que as pessoas vão descobrir nas obras, o que está por detrás das imagens, das linhas, das cores que dançam entre elas.
E por que enveredou pelas artes plásticas? Acha que é algo que nasceu consigo.
A gente tem de aprender a jogar com as cartas que tem nas mãos. É um sacrifício. O meu sonho, o meu desejo sempre foi e ainda é ser actor, um cineasta. Ter um cinema enorme aqui em África, assim do tamanho de Hollywood e também construir um centro de acolhimento de crianças que forme artistas, como músicos, escultores, artistas plásticos. Hoje sou um artista plástico, porque sou natural de mim, faço isso como uma forma de terapia, quer dizer, não sei o que é viver sem pintar.
Desde quando é que sentiu essa necessidade de pintar?
Há 16 anos. Desde pequeno, pintava de forma terapêutica, mas não sabia porque sempre fui sozinho. Depois da infância, as coisas que nós passamos, elas depois começam a vir para a cabeça e há sempre que encontrar uma forma de enfrentar aqueles medos, os desafios, aquela imaginação toda. E uma terapia é sempre muito boa. Tentei com a psicologia, a religião, mas não funcionou. Só funcionou com a arte e a natureza em si, fizeram encontrar-me.
É professor de arte, vive da arte?
Sim, vivo da arte. Não sou muito de ostentar em bens materiais e mais em conhecimento. Sou um luxuoso silencioso. Tudo o que tenho compro com a arte, mas não foi uma coisa premeditada, não planeei, acontece naturalmente.
Qual é a sua percepção sobre o mercado da arte plástica no País?
A arte plástica no País está numa boa caminhada, nós artistas temos trabalhado bastante, temos contribuído bastante, as entidades culturais também têm trabalhado, só penso que precisamos um pouco mais de união entre as entidades culturais e os artistas para poder alavancar-se mais a nossa cultura e a arte em si.
Leia o artigo integral na edição 787 do Expansão, de sexta-feira, dia 02 de Agosto de 2024, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)