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Grande Entrevista

"Pensar que o FMI é dispensável seria perigoso neste período"

Jorge Braga de Macedo, Economista

Com fortes ligações a Angola, o ex-ministro das Finanças português admite hoje estar mais pessimista em relação ao presente, em contraponto com o optimismo aquando da chegada do Fundo há três anos. À Grande Entrevista Expansão, o economista reconhece que com o programa quase no fim, Angola continua a perder a luta contra a inflação e dispensar o FMI pode afundar ainda mais a economia.

Há dois anos, quando o FMI entrou em Angola, numa grande entrevista que deu ao Expansão éramos dois optimistas em relação ao que estava para vir. E hoje, continua optimista?

Não há dúvida que a vida ensina-nos nem a sermos optimistas demais nem pessimistas demais. Neste caso fomos optimistas demais. A análise que estou a fazer é sem a pandemia. O meu pessimismo, e estou confiante que o seu também, não deriva de um choque novo que aconteceu [a pandemia], mas também não podemos excluir que tenha tido um efeito. Tentando isolar a pandemia, porque é que estaremos mais pessimistas? Não devia ser eu a fazer a pergunta mas...

Mas eu faço. Porque é que todos estamos mais pessimistas?

Há dois anos e tal estava a começar um processo a todos os títulos relevante do ponto de vista quer económico quer político. Um país que tinha sempre desconfiado das instituições monetárias internacionais, e alinhava, às vezes estranhamente, com uma Guerra Fria acabada em 1989 decide recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O Banco Mundial já andava por aí, mas um programa com o FMI ganhou força com uma boa energia que vinha de Christine Lagarde, uma senhora francesa consciente da ligação emocional que existe entre muitos angolanos e Paris. São coisas que vêm de trás e não se deve esquecê-las.

Era quase inevitável...

Capitalizar nesta esperança foi uma boa jogada do Governo angolano, percebendo que, se está uma organização internacional à disposição dentro de certas condições, tem que se aproveitar. Agora, como alertei em 2019, quando me perguntou sobre a austeridade, logo respondi que, no meu país, foi utilizada como arma de arremesso político-partidário. Mesmo reformas que eram absolutamente essenciais foram atribuídas à austeridade e revertidas de maneira que agora, sem a austeridade, chegam a estar piores, para além dos efeitos da pandemia.

E o mesmo acontece em Angola?

semelhante pode estar a acontecer em Angola. Há desencanto apesar de o relatório [sobre a quinta avaliação do programa] ser positivo. As coisas estão a correr bem e as que estão a correr mal vão ter uma solução técnica, mas a situação social, económica, empresarial, está pior. Daí estar mais pessimista hoje.

Hoje há mais dívida, mais desemprego, mais recessão. Não está fácil este programa do FMI em Angola...

Há um aspecto essencial do FMI, por isso é que ele se chama Fundo, ele empresta dinheiro mas tem que ter a certeza que o recupera. E portanto, tem que ser muito cuidadoso nas coisas que exige como condições essenciais. E depois se há consequências económicas ou sociais, bom, evidentemente não é indiferente. Seria um exagero pensar que é indiferente. Mas o que é essencial ali é que os objectivos que foram acordados que sejam cumpridos. É interessante até que na última avaliação houve ali uma das coisas sobre os atrasados, em que [o pagamento] não foi no dia, foi uns dias a seguir, repare-se a minúcia. E isto dizer que é má ideia, não. As coisas servem para restaurar a credibilidade, não deteriorar o rating. É isso. Não é a única coisa que um governo deve fazer, mas se um governo não faz isso, dificilmente pode aparecer aos cidadãos ou aos outros países como um país "responsável".

Portanto...

Ignorar o FMI é asneira mas pensar que dá o Alfa e o Ómega também.

Mas não lhe parece também que em Angola até acabaram por demonstrar alguma preocupação social? Por exemplo, chegou-se a um ponto em que o Governo queria acabar com os subsídios aos combustíveis e o FMI recomendava prudência...

Há muitos anos, trabalhei no departamento de pesquisa do FMI e julgo ser a organização internacional mais próxima da investigação académica em moeda e câmbios. Não se lhe pode pedir para ser o diabo e o santo ao mesmo tempo. Quanto mais "feito por medida" é o programa mais desilusão traz quando não é possível ir além da aprovação de legislação financeira e bancária, incluindo o reforço da independência do banco central, por mais importantes que sejam. E não é só na situação de Angola propriamente dita nas também noutros países africanos, nos quais o FMI sempre agiu com muita cautela, até porque os departamentos europeu e latino-americano tinham muito mais peso do que o africano junto dos governadores que tomam as decisões. Toda a gente percebia que eram economias num estágio que não era o da Argentina nem de Portugal, para usar exemplos consagrados de "políticas do FMI" nas décadas 1970-80 antes da queda do muro de Berlim.

Angola continua a perder a luta contra a inflação, - a que um dia chamou de "imposto escondido". Há alguma solução milagrosa além da tão adiada diversificação económica?

Vale a pena lembrar o contexto em que falei nisso no meu país. Portugal teve uma fase de inflação perfeitamente "descabelada" em consequência de ter vivido muito tempo num ambiente de taxa fixa e, quando veio a revolução (1974) e seus aumentos salariais, ter recusado desvalorizar... Portugal recusou durante mais tempo a desvalorização, e a inflação era uma maneira de enganar um povo que estava habituado à estabilidade. Isso durante um tempo funciona.

E depois?

Depois, a certa altura, as pessoas vêem que é um logro, que a inflação é um imposto escondido que tira poder de compra sem dar rendimento ao Estado. Ou seja, a taxa de câmbio num país aberto e em desenvolvimento é um instrumento que se tem de manejar com
cuidado. Assim, de norte a sul e de oeste a leste, há consciência de que a inflação acelera e gera revolta, e a missão do FMI é mitigar o problema - de modo sustentável.

O governador do BNA diz que a inflação em Angola se deve a um problema do lado da oferta nacional...

Qualquer economista sabe que a inflação é o resultado de uma configuração particular da oferta e da procura. A referência à oferta é pois importante, mas o banco central não pode tratar da oferta. Diria antes que a inflação em Angola tem mais a ver com a dependência que a economia tem do petróleo, a que os economistas chamam "doença holandesa" ou "voracidade".

Há alguma solução milagrosa para combater a inflação? Passámos por várias reformas, o câmbio perdeu três vezes o valor, e nada foi compensado com o aumento da produção interna, apesar do discurso oficial...

A maneira como a inflação se vence é sempre dolorosa. No caso português, coube ao Governo, de que fiz parte, fixar o câmbio aderindo ao Sistema Monetário Europeu em 1992, ou seja fixando o câmbio num quadro multilateral muito mais apertado do que o do FMI (que daria lugar ao Euro uns anos depois). Se Angola não pudesse desvalorizar, do ponto de vista financeiro ficaria muito pior. A solução em Angola tem a ver com mais racionalidade no sistema produtivo e também obviamente com as preferências dos consumidores, sempre sacrificadas num ambiente em que o Estado controla praticamente tudo. Além disso, não havia capacidade de resposta descentralizada a nível da produção ou seja da economia real, não financeira. A sensação é que a produção não petrolífera tem sido descurada. E não se pode pedir ao FMI para fazer isso. Quem tem que ajudar é o Banco Mundial e sobretudo as autoridades nacionais e regionais, para de facto promoverem a oferta. Isso é possível e desejável, mas ainda não estará a acontecer.

Quando é que conseguiremos vencer esta luta da inflação?

Neste momento há um programa, que tem que ser cumprido.

Mas acaba daqui a cinco meses...

O que é que vai acontecer a seguir? Liberdade? Outro programa?

E vamos ter eleições para o ano, portanto ainda não há certeza de que vá haver mais FMI...

A questão aqui é que reformas, que nem sempre são populares no início de uma legislatura, tornam-se impossíveis de fazer no fim, ou seja antes das próximas eleições. Recordando o que tentei fazer no governo a que pertenci - o qual viria a perder as eleições em 1995 - julgo pouco provável que num ambiente em que se está a tentar resolver problemas económicos e político-eleitorais, se consigam resolver os dois ao mesmo tempo. A dimensão política, eleitoral se quiser, pode prejudicar algumas reformas económicas mas tem uma importância fundamental para a autoconfiança da população.

Mas é comum que sempre que há eleições haja uma certa tendência a aumentar despesas para mostrar serviço...

Mesmo assim, quando se fazem medidas que são eleitoralistas também nem sempre se ganha. Às vezes tem-se a tendência para aceitar que as pessoas só aceitam as coisas cómodas, só é verdade se forem duráveis, resilientes.

Mas segundo o último relatório do FMI a dívida pública angolana "bateu" nos 135% do PIB. Já assusta?

Isso é um problema muito sério. É uma das grandes luzes de alarme do relatório.

Mas que era expectável com a desvalorização do câmbio...

A pandemia e os seus efeitos foi de tal maneira chocante para toda a gente e todos os países, mais ou menos desenvolvidos, mais frios, menos frios, e o contágio é de tal maneira surpreendente, há aí um mundo que não conseguiu alterar a globalização mas alterou completamente o sentido de segurança. A globalização passou a ser insegura. O FMI tem dado alguma segurança. A diminuição do rating angolano foi má...

E afectou praticamente o único sector que estava em contra-ciclo, a banca.

A dimensão financeira bancária é muito importante, porque sem ela não é possível ter resiliência. De algum modo, é a banca que consegue financiar o investimento, visto que o mercado de capitais nacional está mais longínquo e poderia também beneficiar de maior cooperação a nível da SADC...

Mas também há pouco crédito bancário...

Aí é uma coisa com que o FMI não brinca, porque tem aqueles objectivos particulares e, nesse sentido, não estamos a ver, ainda por cima numa situação internacional ainda muito incerta, como será possível fazer uma alteração.

Angola está a fazer várias reformas, em cima de outros choques "levou" com a pandemia. Como é que teria sido sem o FMI cá?

Pior. O que me parecia como observador interessado em Angola, recorrer ao FMI tem custos mas não recorrer é pior.

Austeridade não é?

Será, mas é melhor que as alternativas - como fingir que não aconteceu nada, ou então tentar uma solução por baixo da mesa, com "amigos poderosos" - Estados que querem ajudar directamente. A entrada de Angola no sistema financeiro internacional público - FMI e Banco Mundial são agências das Nações Unidas, embora autónomas - foi uma grande vitória para os governantes e para os governados. Mas não foi por prazer, foi porque não havia alternativa. A capacidade de influenciar o programa aumenta se perceberem quais são as "linhas vermelhas" da organização FMI, que não está tão doutrinária como no passado. O FMI percebe hoje em dia que a natureza dos problemas se tornou mais abrangente além do aspecto monetário e financeiro. A questão da política orçamental, da sua qualidade quer nas despesas quer nas receitas. Num país que passou a ter exportação de monoproduto, evidentemente fica dependente do preço deste no mercado internacional. Agora está melhor, mas quer dizer, há aqui um repensar pelas chamadas "forças vivas" de Angola que devem procurar alternativas até na história dos últimos 150 anos. Remédios perfeitos não há, por isso pensar que o FMI é dispensável seria perigoso neste período eleitoral. No fundo vai haver uma série de debates e discussões que vão obrigar a perceber o que é razoável e também o que é impossível.

(Leia a entrevista integral na edição 633 do Expansão, de sexta-feira, dia 16 de Julho de 2021, em papel ou versão digital com pagamento em Kwanzas. Saiba mais aqui)