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Opinião

O ovo em pó e a russificação da África

CONVIDAD

Mesmo antes do 11 de Novembro de 1975, já os angolanos sofriam o pesadelo da fome nas suas diversas vertentes de fome calórica, fome crónica ou fome institucionalizada pelo cartão de abastecimento mensal. Depois, com a substituição do exército colonial português pelo corpo expedicionário de Fidel Castro Ruz, os angolanos viram-se privados da importação de bens alimentares dos países ocidentais.

Todo o angolano que guarda a memória dos primeiros anos da independência tem no palato o gosto empacotado da omelete russa, feita com base no ovo em pó oriundo da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Os pacotes de papel grosso com 20 kg de ovo em pó vinham em cargueiros de algum país do bloco socialista.

Mesmo antes do 11 de Novembro de 1975, já os angolanos sofriam o pesadelo da fome nas suas diversas vertentes de fome calórica, fome crónica ou fome institucionalizada pelo cartão de abastecimento mensal. Depois, com a substituição do exército colonial português pelo corpo expedicionário de Fidel Castro Ruz, os angolanos viram-se privados da importação de bens alimentares dos países ocidentais. O embargo só seria "furado" com o beneplácito do Brasil, no início dos anos 80, quando Beto Vandúnem foi ministro do Comércio e o país começou a importar alguns poucos produtos da indústria alimentar brasileira, dentre eles, o famosíssimo sumo Kisuku, que agregaria ao nome do ministro a alcunha de Beto Kisuku.

Chegou-se até a importar frascos com cerejas verdes da Bulgária que depois - na ausência de produção da indústria vidreira - serviram como canecas de finos servidos nos bares de Luanda. Os sedentos de cerveja chamaram- -lhes "búlgaros" de finos. Até a cerveja se tornou escassa por falta de matéria-prima - o malte e o lúpulo - e devido à brusca mudança no sistema da economia nacional. Uma grade de cerveja tinha um prazo de validade muito curto. A escassez de cerveja era tanta, que era racionada: para o cidadão poder beber quatro finos tinha de comprar dois pratos de arroz branco com peixe carapau frito, a única iguaria disponível na maior parte dos bares de Luanda. O sistema monetário à soviética, estruturado na inflexível paridade de 32 kwanzas por cada dólar, permitia já uma especulação no mercado paralelo nascente e serviu de catapulta para o famigerado cabritismo, do provérbio "o cabrito come onde está amarrado". Com a venda de três grades de cerveja, para os sortudos do cartão de abastecimento da classe alta e média e os sortudos com acesso ao sistema de requisições, podia- -se adquirir um bilhete de passagem aérea na TAAG para Lisboa.

Como tudo estava sob gestão pública, devido ao processo de nacionalização das antigas sociedades comerciais e industriais, bens imobiliários e até pequenos restaurantes e bares, um funcionário de uma padaria podia requisitar, por exemplo, 500 pães para revender no paralelo. Alguns chegaram mesmo a comprar viaturas em segunda mão, passado um ano de negócio cabritístico.

Reinstalara-se um modelo de mercado primitivo: a permuta de bens, sem dinheiro pelo meio. Quem possuísse roupas trocava por peixe, quem possuísse cerveja ou vinho trocava por algo que não tinha em casa. Este mercado operava nos quintais das casas.

Pobreza catatónica

Até à legislação-mãe adoptar a economia de mercado e o multipartidarismo em 1991, a economia de Angola vestiu calças e saias apertadas.

Para além da venda da kalashnikov e dos órgãos de Staline que sangraram a juventude angolana durante quase três décadas, a depauperação da vida familiar, numa relação de 80 por cinco em relação à da colónia, foi a principal contribuição da antiga URSS para o subdesenvolvimento de Angola.

Na sua abrangência, a carestia institucionalizada foi o tempo de reduzir um país com enormes recursos naturais a um estado de pobreza catatónica, em que o corpo está inactivo, mas a mente fervilha de ideias e emoções várias. A ideia principal, nacional e progressiva, era a de livre comércio, já experimentada à revelia do estatismo.

Portanto, quando o tovarish Sérgio Lavrov veio a Angola este ano e disse que as relações entre Moscovo e o partido no poder em Angola "remontam a longos anos atrás, ao período da guerra da libertação", realçando o objetivo de chegar a uma parceria estratégica entre os dois países, é difícil saber de que outra parceria estratégica está ele a falar, para além da estratégia caduca do centralismo absoluto do poder do Estado, agora com Valdemiro Putin coroado de czar.

Putin este que está estressado em reunir na órbita da política externa da Rússia o maior número de Estados africanos que puder. A táctica mais recente de russificação da África consistiu em acenar com navios de cereais gratuitos para os africanos carentes.

A aceitação dessa mão cheia de sementes é quase uma vergonha para nós, africanos. Se na zona do Sahel existe o deserto sem água, dos Trópicos para baixo existe uma das maiores bacias hidrográficas do continente ou até mesmo do planeta. Só Angola, com uma aposta bem estruturada e limpa de balidos cabritísticos no empresariado local, poderia abastecer o mercado africano.

Leia o artigo integral na edição 740 do Expansão, de sexta-feira, dia 01 de Setembro de 2023, em papel ou versão digital com pagamento em kwanzas. Saiba mais aqui)

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